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Veja o que já enviamosVestir bege não paga boleto
Disfarçada de tendência estética, o “pareça rica” é uma barreira à justiça social
Uma voltinha pelas lojas, umas passadas de dedo no feed e uma triste constatação: o bege está na moda. Ou melhor: ele é vendido como “elegante”, como o tíquete certo para “parecer rica” (e, de preferência, europeia), e inspira vários tutoriais de redes sociais – afinal, quem quer parecer pobre num mundo em que a pobreza é criminalizada?. O resto, o colorido, o estampado, o ousado, o exagerado, o que salta aos olhos, é “brega”. Essa é a fórmula que tem buscado ditar o comportamento de estilo em 2025. Só que ela é tudo, menos neutra.
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Toda vez que alguém diz “isso é cafona” ou “isso tem cara de rica”, o que está sendo dito no subtexto é: pareça com isso aqui, mas não com aquilo ali. E “aquilo ali”, quase sempre, é o que tem cheiro de periferia, de latinidade, de excesso, de calor, de mistura. O bege virou o uniforme do bom gosto porque se distancia de tudo o que grita identidade. Não é coincidência. É política.

A obsessão por bege não é só estética: é um código de classe. Um apagamento calculado que empacota o desejo de pertencimento num look minimalista. Não é à toa que ninguém ensina homem a parecer rico. O controle sempre recai sobre as mulheres. Dizer a elas o que vestir, como se comportar, o quanto mostrar. Seja discreta, mas sexy. Seja “sexy, sem ser vulgar”. Seja elegante, mas natural. Seja chique — desde que eu diga o que é ser chique. O bege é o novo “sente-se como uma dama”.
Mas o que quer dizer isso, afinal? Que pobre é cafona? Que não sabe se vestir? Que não pode usar bege porque o bege, agora, é senha de acesso à alta casta do bom gosto? A gente está fingindo que um post de Instagram ensinando a “parecer rica” resolve a desigualdade, mas não vê que o desejo por esse cosplay de riqueza anda de mãos dadas com a lógica de excluir. O que é irônico, já que quem, de fato, parece rico, mas na realidade não é, esta lá reclamando da taxação de grandes fortunas e criticando a redução de impostos para a população mais pobre.
Um levantamento mostrado pelo Instituto “E se fosse você” mostrou que taxar bilionários no Brasil afetaria 50 pessoas. E certamente não são as mesmas que estão querendo ensinar a mulherada a ter “cara de rica” no Instagram. Mas quem está entre esses 50 sabe disso, e aproveita para manter na exclusão as pessoas que parecem ricas, e as que gostariam de parecer: todas em busca de um bege que nunca vai trazer justiça social ou pertencimento. Parecer elegante ou rica não paga boleto.
No fim das contas, o bege é um código que diz quem pode circular com dignidade e quem deve permanecer nos bastidores da elegância. A lógica é a mesma do nosso sistema tributário: regressiva, injusta e disfarçada de neutra. Enquanto tanta gente se esforça pra parecer que “aterrissou em Paris” no look de sábado, tem bilionário pagando 2% de imposto sobre renda e ainda reclamando. O resto é “brega”. O resto somos nós.
Para um país que ainda trata renda como privilégio e não como direito, o bege é só mais uma forma de dizer: “vista-se como se tivesse, mas não ouse querer ter” (e isso vale também para quem está ensinando a emular elegância e riqueza, mas, no fundo, está mais próximo de quem chama de “pobres”).
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