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“Vale tudo” pela masculinidade?

Possível confusão em bastidores de remake de novela global lança luz sobre o que se entende por “ser homem”, e o que acontece com mulheres que se recusam à submissão

ODS 5 • Publicada em 29 de abril de 2025 - 09:09 • Atualizada em 1 de maio de 2025 - 11:05

À beira dos meus 40 anos, tenho minha identidade nacional forjada em dois patamares da brasilidade – pelo menos até a minha geração: novela e fofoca. Sendo assim, não tive como desviar (e nem quis) do assunto que fervilhou feito Eno em copo d’água na internet nas últimas semanas. Falo da treta nos bastidores de Vale Tudo, esperado remake da novela-hit homônima da Globo, guardado para a longa lista de comemorações dos 60 anos que a emissora completa este ano.

Leu essa? De ‘A substância’ à volta do ‘heroin chic’: misoginia está sempre na moda

Em bom mineirês, “diz que” Bella Campos e Cauã Reymond, protagonistas da produção, “se desentenderam”. Bella teria acusado o parceiro de cena de atitudes machistas e agressivas durante as gravações e formalizado queixas à direção da Globo.  Além disso, também veio à tona um suposto desentendimento de Cauã com outro colega de elenco de Vale Tudo, o gato-sambista-gente-como-a-gente Humberto Carrão, que, segundo notícias publicadas em sites especializados em bastidores de TV, “fala encostando nas pessoas”, o que teria levado Cauã, incomodado com isso, a quase agredi-lo. A contenda ganhou destaque na mídia e parece ter gerado tensão, com a Globo intervindo para tentar resolver o conflito e manter o ritmo de trabalho da novela.

Cauã Raymond e Bella Campos em cena de Vale Tudo: noticiada confusão nos bastidores da gravação da novela joga luz sobre conceito de masculinidade e seus impactos sobre as mulheres (Foto: Angélica Goudinho / TV Globo / Divulgação)

Como estou bem longe de ser santa, é claro que acompanhei os desdobramentos pelo disse-me-disse, sobretudo de gente que se manifestou apoiando a jovem atriz de Vale Tudo.  Neste hall, várias outras artistas se manifestaram, entrelinhas ou abertamente, num tom de “eu já sabia”. Algo cheira muito mal no patriarcado – e nada tem a ver com desodorante – quando uma mulher expõe alguma misoginia que sofreu e imediatamente encontra eco entre outras mulheres.

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Quando uma mulher é vítima de abuso e decide não se calar, há sempre quem vá mobilizar o discurso de “caça às bruxas”: “vai destruir a vida do cara”, “tem que ver se essa acusação procede”, “agora tudo é abuso”. Como se não fosse equivocado o suficiente, buscar este argumento com ares de superioridade histórica é uma manobra burra, que ignora a realidade de que foram elas, as ditas “bruxas”, que foram exterminadas apenas por serem mulheres que se recusaram a dançar conforme a batida do patriarcado. Mortas por praticarem a elaborada feitiçaria de não se curvarem a regras que as oprimem.

E embora eu tema ficar monotemática, não consigo entender que masculinidade é essa que se estremece diante do toque amistoso de um outro homem. Que tem que se afirmar sempre na diminuição das mulheres, com a arrogância de quem sempre crê que tem algo a ensinar. Que causa constrangimento no machismo recreativo, em piadas sobre estarmos o tempo todo correndo atrás de macho, de sermos burras, de sermos fúteis, de não sermos capazes de dirigir/entender futebol/insira aqui qualquer coisa que queiram nos negar.

Hoje mesmo ouvi uma pérola, uma piada de estupro: “Opaaa! mas foi consentido ou não? Cuidado que a Júlia está na área!”. Porque é assim que funciona o jogo, desde que o mundo é mundo. Somos sistematicamente submetidas a violências, e, se não achamos graça, se não compactuamos com isso e não dizemos “sim, senhor”, somos taxadas de loucas, radicais, histéricas e exageradas: “a Júlia tá na área”.

O pano de fundo do “é só uma piada”, no entanto, é um modelo de negócios altamente lucrativo nas redes sociais. Pesquisas como a do Laboratório NetLab/UFRJ mostram que 137 canais no YouTube dedicados à propagação de ódio contra mulheres já somam 3,9 bilhões de visualizações, vendendo desde “cursos” para manipular mulheres até consultorias de comportamento que chegam a custar R$ 2 mil. Uma indústria que se alimenta do medo, da insegurança e de um desejo problemático de vingança contra mulheres que não aceitam ser subjugadas. Como se fossem uma pedra no sapato de uma hegemonia prometida no nascimento, quando lhe atribuem o gênero: “é um menino!”.

Assim, meninos crescem sendo preparados como soldados de uma guerra imaginária pela masculinidade. Mas volto a fazer perguntas: que macho é esse que só sobrevive se for protegido pelo silêncio das mulheres? Que homem é esse que se diz perseguido toda vez que uma mulher reivindica autonomia? Vale a pena defender esse ‘ser homem’ que só pode ser construído pela força bruta, a agressividade, e a anulação de tudo que é lido fora do reflexo de sua própria imagem?

“Vale tudo” pela masculinidade? Essa masculinidade?

Porque daqui de onde ando vendo, ela se parece cada vez mais com a proverbial festa pobre para a qual nem eu nem mulher alguma foi convidada, armada – obviamente – pelos homens pra nos convencer a pagar sem ver drogas malhadas muitíssimo antes que a gente nascesse.

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