A tarde corria igual às outras na Escola de Comunicação da UFRJ, e a faxineira cumpria sua jornada de trabalho, no prédio histórico da Praia Vermelha. Negra, uniformizada, permanecia invisível aos alunos, professores e funcionários que lhe cruzavam seu caminho pelos corredores compridos de piso irregular pela ação do tempo. Até que…
“Sônia?”, perguntou uma aluna. A trabalhadora parou, num susto. Ficou por um instante sem ação – não estava previsto que seria reconhecida. O combinado, no país do racismo e da exclusão, era varrer salas, escadas e corredores, sem ser notada.
Leu essa? O bloco que é uma loucura
Mas num desses dribles que o andar de baixo aplica no Brasil, vez ou outra, ouviu seu nome e olhou para a interlocutora, que a fitava, igualmente surpresa. Brotou, então, o sorriso largo, a outra assinatura de Sônia Capeta, rainha de bateria da Beija-Flor por mais de 20 carnavais. A estudante, torcedora da escola de frequentar a quadra em Nilópolis (certamente a única, no prédio todo), deu um abraço de fã.
Juntou gente em volta. Estava ali, de vassoura na mão e uniforme escuro, largo e mal arrumado, uma das maiores dançarinas da história das escolas de samba. O passo único, miudinho, que movimenta os quadris de forma impossível de ser imitada, a faz celebrada na Sapucaí e em todos os palcos e quadras onde se apresenta. Sônia é, ainda, um ícone da Beija-Flor, ao lado de Neguinho, Pinah, o casal de mestre-sala e porta-bandeira Claudinho e Selminha Sorriso, o mestre de bateria Plinio.
A mágica do Carnaval quebrou o contrato da exclusão – e, em pleno espaço ainda dominado pela elite (apesar das políticas de acesso ao ensino superior, que mudaram um pouco a cara das universidades), a fantasia de faxineira caiu. Outros estudantes a cercaram e Sônia Capeta virou até reportagem no jornal da UFRJ. Descoberta tardia, mas completamente merecida.
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A jovem caminhava pela calçada escaldante do verão da Zona Oeste carioca, na volta do mercado. Vestia a famosa “roupa de ficar em casa”, incluindo franciscanos chinelos de dedo, próprios a tarefas como a que cumpria. De novo, não estava combinado que surgiria ali, naquela jornada banal da década de 1990, o convite que mudaria sua vida.
“Quer desfilar no Carnaval?”, perguntou um homem atarracado, de barba, que lhe abordou no meio da rua. (No futuro, poderia até ser enquadrado como assédio, pela dificuldade para explicar que focinho de porco não é tomada.) Ainda adolescente, ela tateava buscando a carreira de modelo – vencera, meses antes, concurso de beleza na academia que frequentava. Gostava de samba, mas nunca havia pensado nas escolas como caminho.
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Veja o que já enviamosCorajosa desde sempre, ela topou e estreou no desfile de 1996, pela Beija-Flor. Depois passou por Unidos da Tijuca, Mangueira, Caprichosos de Pilares, União de Jacarepaguá, Inocentes de Belford Roxo, Vila Isabel e Império Serrano, até se tornar rainha de bateria da Mocidade Independente.
Mas o status de personagem ultrapopular, uma das estrelas absolutas da festa, chegaria em 2008, quando ela foi empossada como monarca dos ritmistas do Salgueiro. Encontrou seu povo na vermelho e branco da Tijuca – a 20 quilômetros de distância da Praça Seca onde cresceu –se consagrou “rainha das rainhas”.
O cargo se renova todo ano, quando Viviane Araújo dobra o “joelho” da Sapucaí (a esquina com a Avenida Presidente Vargas) para receber os aplausos e gritos apaixonados da plateia do Setor 1. É uma apoteose! Na maratona de folia, passam ali quase 40 mil pessoas, desfilando pelas 12 escolas do Grupo Especial. Ninguém recebe tantos aplausos e saudações.
O Carnaval serviu de plataforma para ela decolar. Virou atriz da Globo, fez vários programas, novelas, peças e filmes. O povo do samba, inegociavelmente apaixonado, mobilizou-se para levar Viviane à vitória na quinta edição do reality show “A Fazenda”, da Record, com o maior percentual de votos da história do programa (84%). Em 2023, aos 47 anos, desfilará mais uma vez no Salgueiro, agora como mãe. Joaquim nasceu no início de setembro, para arrematar o conto de fadas.
Salve, rainha das rainhas. Vida longa!
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Na comunidade da Zona Oeste onde Mayara Lima nasceu, há uma escola de samba minúscula, a Mocidade Unida da Cidade de Deus, que, em 2023, desfilará no último grupo, o de Avaliação, segunda-feira de Carnaval, na pista da nova Intendente Magalhães. Na mesma noite, a moça vai brilhar na Passarela principal, a Sapucaí, em sua estreia como rainha de bateria do Paraíso do Tuiuti. Posto que conquistou graças ao mais legítimo apelo popular desses tempos digitais.
A peregrinação carnavalesca da jovem passou pelo Salgueiro, onde afinou seu samba, até chegar à escola atual, de outra favela, na região de São Cristóvão. Em 2022, era princesa da bateria – o lugar de rainha fora vendido (R$ 500 mil) a uma dentista/influencer/aprendiz de política, loura, moradora também da Zona Oeste, mas no andar de cima, a Barra da Tijuca.
Noves fora os recursos, a endinheirada tinha pouco a oferecer. Teve aulas de samba que não compensaram o investimento e a interação com os ritmistas simplesmente inexistia. Ao lado, Mayara voava. Negra, linda, dançava exuberante e recebia todos os olhares fascinados.
A rainha de aluguel faltou a um ensaio (longe, de noite, não dá, né?) e a princesa ocupou o lugar central, com inédito encantamento: coreografias com os ritmistas, num entrosamento mágico. Quando a cena ganhou as redes sociais, virou caminho sem volta. Mayara explodiu na comunidade carnavalesca, aumentando o constrangimento da loura “arrendatária” e da escola, que embarcou na aventura pecuniária.
No pré-desfile de 2022, todo mundo só queria saber da princesa. A rainha, vilã toda vida, bateu pé e desfilou no posto comprado, mas antes da Apoteose, jazia tragada pelo ostracismo. Encerrado o desfile, Mayara foi empossada no posto principal – e seu passo majestoso ficou ainda mais célebre.
Parâmetros mundanos como pobreza e riqueza acabam ressignificados, muitas vezes trocando de papel, no planeta de inversões e outras peculiaridades chamado Carnaval. Ajudam, inclusive, a produzir fábulas irresistíveis.