Para quem queria desenhado: ‘todo homem é um estuprador em potencial’

‘Somos estupradas também por ferrenhos defensores de direitos humanos, ávidos leitores de Gramsci, poetas que “amam” e exaltam as mulheres’ – Júlia Pessôa. Na foto, o médico Giovanni Quintella Bezerra, preso por estupro. (Arte: Dan Torres)

É preciso desconstruir essa ideia torta de que estupradores estão à nossa espreita em becos mal iluminados e ruas desertas, esperando que a vítima “dê bobeira” para as atacarem, escreve a jornalista Júlia Pessôa em artigo.

Por Júlia Pessôa | ODS 5 • Publicada em 13 de julho de 2022 - 12:29 • Atualizada em 12 de agosto de 2022 - 09:48

‘Somos estupradas também por ferrenhos defensores de direitos humanos, ávidos leitores de Gramsci, poetas que “amam” e exaltam as mulheres’ – Júlia Pessôa. Na foto, o médico Giovanni Quintella Bezerra, preso por estupro. (Arte: Dan Torres)

Qual é a semelhança entre o estuprador formado em medicina que violentou uma parturiente anestesiada em plena cesárea e o homem que está mais perto de você neste momento (ou você, caso seja homem)? Para qualquer mulher – e para algumas, muito mais do que para outras -, ambos são um perigo, ao menos em potencial.

Todas as vezes em que dissemos e dizemos (e diremos!) que “todo homem é um estuprador em potencial”, não tarda a chegar o coro dos ofendidos rebatendo, nos acusando de radicalismo. Pois está aí, no que parece um daqueles exemplos esdrúxulos, só para forçar alguma compreensão: estuprada pelo anestesista de sua cesárea, desacordada.

Leu essa? Médica: ‘pratiquei muita violência obstétrica porque assim era ensinado’

Se uma mulher precisa temer ser vítima de estupro enquanto está parindo, anestesiada, dentro de uma sala de cirurgia, sob os cuidados de uma equipe médica… qual homem não pode ser um abusador? Quando DIABOS será possível não ter esse medo?

Como muito tem sido dito nos últimos dias, é preciso desconstruir essa ideia torta de que estupradores estão à nossa espreita em becos mal iluminados e ruas desertas, esperando que a vítima “dê bobeira” para as atacarem.

Júlia Pessôa
Jornalista

Nem com a morte. Não são raros casos de cadáveres de mulheres violados sexualmente e que inclusive viram piadas em grupos de necrofilia em redes sociais, como o intolerável “Festa no IML”, denunciado há alguns anos. Ao contrário do que se prega, a paz de se sentir acolhida de um estupro tampouco na busca por Deus, basta que a gente se lembre de tantas ocorrência de líderes religiosos que abusaram de seu poder para violar mulheres.

Essa segurança definitivamente também não está em casa, no círculo de amizades, no casamento, no namoro, na família. De acordo com o Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2022, 8 em cada 10 casos de estupro registrados no ano passado foram de autoria de um conhecido.

“Foi estuprada pelo pai enquanto a mãe cuidava do bebê.”
“Foi estuprada pelo marido enquanto dormia.”
“Foi estuprada por um amigo da família durante um churrasco.”
“Foi estuprada pelo melhor amigo depois de uma festa.”
“Foi estuprada pelo patrão nos fundos da casa.”
“Foi estuprada pelo médico, anestesiada, enquanto passava por uma cesárea”.

Como muito tem sido dito nos últimos dias, é preciso desconstruir essa ideia torta de que estupradores estão à nossa espreita em becos mal iluminados e ruas desertas, esperando que a vítima “dê bobeira” para as atacarem. Como vimos diariamente e fomos relembradas incontáveis vezes nos últimos dias, quando se é mulher, o simples fato de existir é “dar bobeira”.

O perigo está em qualquer canto, a qualquer hora do dia, e não se escondendo sob a suposta maldade desviante de um “monstro”, “louco” ou “doente”. O estuprador é o homem ao lado. 

Somos estupradas também por ferrenhos defensores de direitos humanos, ávidos leitores de Gramsci, poetas que “amam” e exaltam as mulheres. Essa máxima sim, é infalível

Júlia Pessôa
Jornalista

E ao contrário do que acontece com alguns outros tipos de atrocidades, é impossível cravar um “não falha jamais” descobrindo as inclinações eleitorais do perpetrador. Somos estupradas também por ferrenhos defensores de direitos humanos, ávidos leitores de Gramsci, poetas que “amam” e exaltam as mulheres. Essa máxima sim, é infalível: “nada mais parecido com um abusador de direita do que um abusador de esquerda”.

Só por agora, enquanto o sangue ferve de raiva, quero me abster de pensar em soluções possíveis, plausíveis e urgentes para um futuro menos assustador para mulheres e meninas, nascidas e/ou tornadas. Hoje quero comer as palavras de Audre Lorde e lembrar que ter de ensinar o opressor sobre as violências a que ele nos submete é outro mecanismo de dominação.

É inegável, claro, que a repercussão midiática de casos de violência sexual mostra uma indignação massiva diante de qualquer caso de estupro. Mas também é incontestável que a própria revolta expõe outra ponta gravíssima do problema. É como cobrir a cabeça e destampar os pés.

Deseja que o médico abusador vire “menininha” ou “mulherzinha” na cadeia, querendo dizer que ele deve ser estuprado, é uma ilustração perfeita da cultura em estupro em pleno funcionamento. Virar mulher é se tornar “disponível” para o estupro? Ser menina é ser estuprada? (No Brasil, aparentemente sim, crianças e adolescentes foram a maioria das vítimas de estupro de vulnerável em 2021.O grupo com maior percentual foi o de 10 a 13 anos, seguido das crianças de 5 a 9 anos.)

A cultura do estupro vai adiante, refinada em sua crueldade, procurando atribuir culpa, invariavelmente, à vítima, ao passo que desonera o perpetrador.

“Mas que roupa ela estava usando?”
“Mas o que ela estava fazendo ali àquela hora?”
“É criança, mas ela tem umas brincadeiras maduras.”
“Bêbada daquele jeito, queria o quê?”
“As meninas de hoje sabem mais que muita mulher.”
“Com certeza, ela estava provocando.”

Casos como o do abusador anestesista expõem, da forma mais abjeta possível, que basta apenas uma coisa para um estupro aconteça. Qual é a semelhança entre a mulher estuprada pelo médico durante sua cesárea e qualquer outra vítima de violência sexual? Basta haver um estuprador – e ele pode ser absolutamente qualquer um.

Júlia Pessôa

Júlia Pessôa é jornalista, mestra em comunicação, especialista em gêneros e sexualidades e doutoranda em ciências sociais. Atuou no jornalismo diário por mais de dez anos, cobrindo principalmente cultura, gastronomia, gêneros, sexualidades e direitos humanos. Tem experiência de docência no ensino superior público e privado, no qual atua até hoje. É autora do livro de crônicas “Heteronímia” (2017), publicado pela Lei Murilo Mendes de Incentivo à Cultura (Juiz de Fora- MG) e tem publicações em veículos como UOL Tab, BBC Brasil e O Globo. Inexoravelmente feminista.

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