“Só estou viva porque esse botão do pânico existe”

Sistema dispara alarmes quando agressores se aproximam de vítimas e aparelho permite que mulheres possam acionar polícia

Por Caroline Rocha | ODS 16ODS 5 • Publicada em 8 de setembro de 2023 - 10:00 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 19:27

Cristiane Machado mostra foto de seu pager com botâo de pânico: sistema para alertar vítimas e polícia da aproximação de acusados de violência doméstica (Foto: Luís Alvarenga / Seap)

“Tenho certeza que só estou viva porque esse botão do pânico existe”. O desabafo retrata o alívio da atriz Cristiane Machado, a primeira mulher amparada no Rio de Janeiro pelo sistema de monitoramento que liga tornozeleiras eletrônicas de agressores aos pagers de suas vítimas, alertando do descumprimento do limite de distância estabelecido pela Justiça. O sistema – que funciona desde 2019, na Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) e também em outros estados – pode se tornar obrigatório em todo o país caso o Congresso transforme em lei o projeto (PL 3680), que acaba de ser aprovado pela Comissão de Direitos da Mulher da Câmara.

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A utilização do equipamento pode ser determinada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), mas também pode ser solicitada pela vítima, pela Polícia Civil ou pelo Ministério Público. Ao todo, 96 mulheres usaram o botão do pânico desde sua origem, mas, atualmente, apenas 57 vítimas são amparadas – para as mulheres, o uso do sistema é opcional. A disponibilização do equipamento é ilimitada e oferecida de acordo com a demanda, segundo a Seap.

Eu tenho uma rotina marcada por estar sempre com medo. Foram inúmeras violações com o botão do pânico informando que o meu agressor estava infringindo o raio permitido

Cristiane Machado
Atriz

No caso dos agressores, atualmente há 102 acusados de violência doméstica com tornozeleira eletrônica e supervisionados todos os dias pela Seap. Em média, cerca de 43,5 mil medidas protetivas de urgência foram distribuídas por ano de 2019 a 2022, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Não há critérios fixos para a implementação da ferramenta, contudo, de acordo com o TJRJ, ela é destinada, em geral, para casos mais complexos ou graves, em que o juízo não considere que o agressor não chegue a apresentar risco a ponto de justificar a prisão preventiva.

De acordo com a Seap, em geral, após a decretação da medida protetiva pelo juiz, a mulher e o agressor comparecem, separadamente, a uma das unidades de monitoração da secretaria para que ela receba um pager e ele, uma tornozeleira. O agressor passa a ser monitorado por GPS imediatamente após a entrega. “Nós temos uma base no CICC [Centro Integrado de Comando e Controle] onde ficam dois policiais 24 horas por dia. Assim que o agressor se aproxima da área da vítima, começa a apitar um alerta no computador e, imediatamente, um dos nossos policiais entra em contato por telefone com o agressor e com a vítima e avisa que estão próximos”, explicou Nilton Machado, coordenador do Centro de Monitoração Eletrônica. “Se ele ou ela não atender, principalmente ele, é feito contato com o 190 [central de emergência da Polícia Militar] e a patrulha mais próxima vai em direção ao agressor”, acrescentou.

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Não é apenas na CICC que o alarme é gerado. O pager e a tornozeleira também vibram para alertar aos envolvidos sobre a aproximação indevida. Caso a vítima aperte o botão do pânico, a central do 190 é imediatamente acionada e uma viatura é direcionada para o local onde a mulher está. Apesar do alívio da medida de segurança, a sensação de saber que seu agressor está a poucos metros condiz exatamente com o nome da ferramenta, contou Cristiane Machado: “Pânico e pavor! Já fui socorrida pela Guarda Municipal, pela patrulha da Maria da Penha, escoltada por seguranças dos estabelecimentos onde eu estava, escoltada pela Polícia Civil… Eu tive a minha vida roubada e ainda não tive ela de volta”.

A atriz conta que seu ex-marido já desobedeceu a imposição dos 200 metros de distância inúmeras vezes. O botão que ela carrega já vibrou, por exemplo, na terapia, na porta de casa, durante entrevistas para emissoras de televisão, após palestrar e ao tentar acessar a Defensoria Pública. “Tem uma entrada da Justiça que é exclusiva para vítimas de violência doméstica e o meu botão do pânico tocou quando eu estava saindo do acesso, no Centro da cidade. […] Eu voltei para dentro do prédio e fui socorrida pela Guarda Municipal e por seguranças do próprio prédio”, contou Cristiane.

Interromper os planos para buscar abrigo e proteção já faz parte da rotina da atriz, que afirma convive, diariamente, com o temor da morte. “Eu tenho uma rotina marcada por estar sempre com medo. Foram inúmeras violações com o botão do pânico informando que o meu agressor estava infringindo o raio permitido. E, obviamente, ele é contatado a se retirar e muitas das vezes não se retira”, relatou.

Quanto mais vai sendo divulgado, mais eles vão ficando com medo e vão se afastando da vítima

Nilton Machado
Coordenador do Centro de Monitoração Eletrônica da Seap

A atriz foi vítima de agressões do então marido em 2018. O crime foi denunciado publicamente em 2019 no Fantástico, que exibiu imagens capturadas por câmeras de segurança escondidas pela vítima. O agressor foi condenado a três anos de prisão por lesão corporal. “Meu agressor hoje é um condenado pela justiça, mas é muito difícil a gente chegar nesse momento, em que não cabe mais recurso. Nesse processo, o botão é muito útil. Considero uma evolução da medida protetiva”, destacou a atriz, que hoje é ativista da mulher e no enfrentamento da violência doméstica. 

Os vídeos da época e os atuais registros gerados pelo botão do pânico têm o mesmo objetivo para Cristiane: garantir que o pedido de ajuda seja levado a sério. “O preconceito e a descrédito da palavra da vítima é uma coisa muito grave. Quando você tem uma comprovação fica mais fácil, ou, pelo menos, [a instalação das câmeras] era para que a minha mãe e meu pai pudessem ter a chance [de obter justiça] se eu não saísse viva”, ressaltou.

Um dos grandes desafios no pós-denúncia é comprovar que o criminoso se aproximou ilegalmente da mulher. Por isso, além do aviso imediato, a Seap envia relatórios à Justiça sobre o percurso do agressor, quanto tempo ele esteve em cada lugar e os momentos em que cruzou com a vítima. “Hoje só consigo comprovar os descumprimentos da medida protetiva por causa desse botão”, afirmou a atriz.

Desde a criação da ferramenta, nenhuma mulher amparada foi agredida, segundo a pasta. Em 2023, o botão do pânico foi acionado 41 vezes. “Quanto mais vai sendo divulgado, mais eles vão ficando com medo e vão se afastando da vítima”, destacou o coordenador do Centro de Monitoração Eletrônica. O sistema da Seap para atender as vítimas de violência inspirou ainda a criação do aplicativo Rede Mulher, desenvolvido pela Polícia Militar, que pode ser instalado no celular e também conta com um botão de pânico para permitir que a vítima acione a central de emergência 190 eletronicamente, sem a necessidade de fazer uma ligação.

Sala com equipamentos para monitoramento na Seap: 57 vítimas com pagers com botão de pânico, 102 agressores com tornozeleiras eletrônicas (Foto: Divulgação/Seap)
Sala com equipamentos para monitoramento na Seap: 57 vítimas com pagers com botão de pânico, 102 agressores com tornozeleiras eletrônicas (Foto: Divulgação/Seap)

Violência doméstica em alta

Em 2021 e 2022, o estado do Rio de Janeiro registrou mais de 54 mil denúncias de violência doméstica, um aumento de 9%, enquanto no Brasil houve crescimento de 2,9% no mesmo período, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023. Especialista em planejamento de políticas públicas de gênero e pesquisadora de desigualdade de gênero da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Clara Maria Araújo, aponta a ineficácia das campanhas produzidas pelos serviços públicos como um dos fatores para os altos números de vítimas no país.

Araújo investigou a produção destes materiais a nível nacional entre 2000 e 2023 e concluiu que a maioria deles não alcança seus objetivos. “As campanhas ainda trazem poucas informações ao público e às mulheres. Boa parte não tem informação sobre o que essa mulher deve procurar”, afirmou. De acordo com a pesquisadora, a tentativa de comunicação se torna falha quando os serviços públicos se preocupam apenas em indicar para a vítima a violência que ela está sofrendo sem orientá-la sobre os próximos passos, entre eles onde e como fazer a denúncia.

Outro erro cometido é o direcionamento das campanhas apenas para as mulheres que já sofreram agressões físicas. Segundo a especialista, as políticas de combate podem ser divididas em três categorias de acordo com seu objetivo: primária, secundária e terciária. A pesquisa de Araújo aponta que os materiais produzidos desde 2000 concentram-se na última, ou seja, no incentivo para que mulheres que já foram vítimas de violência física vão até a polícia.

As campanhas primárias objetivam conscientizar a sociedade, inclusive os homens, sobre as problemáticas da desigualdade de gênero, a fim de prevenir qualquer tipo de violência contra a mulher. Já a secundária foca em mostrar para o público feminino quais são as “agressões por debaixo dos panos” para evitar a evolução da crueldade. Por isso, essas campanhas jogam luz sobre comportamentos abusivos e tóxicos dos homens para que as próprias mulheres e a comunidade ao redor intervenham neste ciclo.

“É importante que os governos, sobretudo os municipais e estaduais, destinem mais informações e campanhas voltadas para a chamada prevenção primária. Essas campanhas podem ser públicas, como o cartaz que está na rua e as chamadas [nos meios de imprensa], mas é muito importante que a ação do governo também seja dirigida para algumas áreas específicas, como as escolas, serviços médicos, trens, metrôs”, concluiu a especialista. Segundo ela, as iniciativas primárias possuem maior efetividade no combate da violência contra a mulher que as campanhas secundárias e terciárias, que aguardam o crime para a efetiva ação.

 

Caroline Rocha

Jornalista em formação, podcaster e estudante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Atual estagiária de jornalismo na Super Rádio Tupi, é apaixonada por olhar os outros, as coisas e a vida por novos ângulos.

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