Toda a internet – com razão – está falando de “Adolescência”, minissérie de Jack Thorne e Stephen Graham lançada pela Netflix em março. (Se você ainda não viu, pare de ler por aqui ou continue por sua conta e risco de pegar spoilers). A série é um retrato de como a masculinidade é construída em tempos de redes sociais, emojis e o acesso a absolutamente qualquer coisa em um movimento de dedo.
Não que a misoginia tenha sido inventada pelas tecnologias da comunicação, ou pela internet. Eu me lembro bem de ser adolescente e temer sair em listas que eram muitas vezes escritas à mão e rodavam pelas escolas, das “mais feias”, “mais piranhas”, “mais gordas” ou “mais” qualquer tipo de ofensa utilizada para diminuir mulheres. Lembro também de fitas VHS que circularam pela cidade inteira expondo meninas que estavam começando a viver sua sexualidade, e foram gravadas sem seu consentimento e conhecimento. A misoginia é, como se diz, “mais velha que andar pra frente”.
Leu essa? Adolescência: é possível fazer melhor
E ela é didaticamente ensinada desde antes que as crianças nasçam, em pais de meninas que dizem, ao saber da filha que se anuncia, “que deixaram de ser consumidores para se tornarem fornecedores”. E assim crescem as crianças, meninas sendo tratadas como produtos, e meninos entendendo que elas são algo a se consumir, ao seu dispor. Não é exagero: é as crianças que se ensina como se tornar um homem ou uma mulher e, historicamente, ensina-se as meninos que boa parte de ser homem é subjugar, violentar, objetificar e anular mulheres (em casos extremos, literalmente).

Na série, o adolescente Jamie mata uma colega de escola a facadas, porque ela o teria rejeitado. É o retrato do que ocorre na vida, em tantos feminicídios que são “justificados” com “não aceitou o fim do relacionamento”, “por ciúme”, ou qualquer coisa que se tenha naturalizado, mas na verdade é incabível. Não se justifica o injustificável, muito menos quando ele parte de um pressuposto de que uma mulher que não está disponível para macho merece qualquer tipo de violência.
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Veja o que já enviamosJudith Butler nos diz, em linhas que estou generalizando muito, que o gênero, “ser homem”, “ser mulher”, ou ser qualquer gênero, é performance. E a performance de “homem” sempre esteve ligada, em maior a menor grau, a negar tudo que venha do feminino, nem que seja o eliminando com as próprias mãos. Ao mesmo tempo, passa também por sentir a masculinidade diminuída, ridicularizada, humilhada, a toda negativa de meninas e mulheres a fazerem a vontade, considerada soberada, de meninos e homens, de todas as idades.
Depois de verem “Adolescência”, a internet, os pais e as mães se estarreceram diante dos efeitos trágicos que essa construção de masculinidade pode ter em meninos jovens, sobretudo quando não se sabe a que tipo de conteúdo eles têm acesso em seus quartos de portas fechadas. Ao mesmo tempo, culpam a “criação” que, na maioria esmagadora das vezes, recai sobre as mulheres, sobretudo no trato de questões emocionais.
Enquanto isso, pais engolem a seco sofrimentos e dores imensas, dando murros raivosos em paredes, ou pintando xingamentos em seus automóveis. Porque não aprenderam que homens devem falar sobre o que sentem, e por isso não sabem ensinar. Em quem essa conta vai chegar? Já entenderam meu raciocínio, né? Certamente nas mulheres, responsabilizadas pelo cuidado e a criação das crianças e das pessoas em geral. É uma luta desigual, em que somos vítimas de um problema e responsabilizadas por sua solução. A conta não fecha, nunca vai fechar.
A mesma sociedade que se “choca” e se “assusta” com o que pode estar acontecendo a portas fechadas nos quartos dos meninos jovens não parece se indignar tanto quando homens acusados de estupr0 são revoltantemente absolvidos. Na última semana, o Tribunal Superior de Justiça da Catalunha absolveu Daniel Alves da acusação de estupro, apesar de sua condenação anterior a 4 anos e 6 meses de prisão.
Durante o processo, Daniel Alves modificou seu depoimento diversas vezes, o que foi um dos pontos levantados na acusação, e o depoimento da vítima nunca mudou. Ela fez exame de corpo de delito, que constatou a violência, tendo, inclusive, encontrado sêmen do ex-jogador no corpo da vítima. O que mais é preciso para provar um estupro? O que mais se deve fazer para que um homem seja responsabilizado pelas violências que cometeu? Como ser mulher em um mundo que nos culpa quando somos violentadas e nos descredibiliza mesmo quando apresentamos todas as provas cabíveis desta violência? Por que as pessoas se chocam com “Adolescência” e acham que uma mulher vítima de estupro que denuncia o abuso “pode ser uma oportunista querendo 15 minutos de fama”?
A verdade é dura de engolir. Por todo o movimento que tenho observado na internet, a preocupação suscitada com “Adolescência” parece estar muito mais ligada ao medo de ver o filho, um garoto, “virar um monstro” do que com a ameaça e as consequências que isso traz para as meninas, mulheres e para a vida em sociedade de forma geral. Não existem “monstros”, feminicidas, estuprad0res e abusad0res não são “doentes”, são o retrato de um patriarcado que segue saudável e pulsante, pronto para inocentar mais um ex-jogador de futebol.