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E a polêmica das pessoas que menstruam?

ODS 10ODS 5 • Publicada em 15 de dezembro de 2022 - 07:58 • Atualizada em 15 de março de 2023 - 15:10

(Bruna Benevides e Kaleb Salgado*) – Recentemente a comunidade trans foi surpreendida com uma polêmica em torno do uso de uma linguagem inclusiva para falar de condições compartilhadas por pessoas que têm útero e/ou podem menstruar. E isso gerou uma grande discussão nas redes, exatamente porque muitas pessoas não tem conhecimento sobre identidades e corpos que fogem da regra cis-binária homem e/ou mulher. E por isso, sentimos a necessidade de tentar explicar (ou des-explicar) pontos de vista muito importantes para esse debate e convidei o Kaleb para dividir essa escrita comigo.

É importante ressaltar que homens trans, pessoas transmasculinas, não binárias e intersexos são pessoas que, se tiverem útero ou partes dele, podem vir a engravidar, menstruar, gestar, conceber ou abortar. E necessitam estar inseridos nas discussões sobre o acesso à saúde sexual e reprodutiva, assim como na garantia do enfrentamento da pobreza menstrual. Por isso pensamos em uma forma de garantir cuidados específicos para esses temas que vão além das políticas “para mulheres”, e é daí que surge a necessidade de usarmos o termo “pessoas que menstruam” para englobar todos os tipos de pessoas e corporalidade que podem menstruar, já que não só as mulheres cisgêneras (que não são trans) têm essa possibilidade.

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Diante disso, temos nos perguntado como ficam as meninas e crianças que, às vezes, aos 9, 10, 11 anos de idade menstruam? Homens trans e pessoas transmasculinas, pessoas não binárias e intersexo? Por acaso essas pessoas todas serão chamadas de mulheres porque compartilham a mesma capacidade corporal? Bem, as vezes a resposta é mais simples que parece: Embora algumas mulheres façam parte do grupo de pessoas que menstruam, não são todas as mulheres que menstruam, assim como nem toda pessoa que menstrua é mulher.

E é exatamente nesse sentido que gostaríamos de propor uma reflexão: a menstruação é uma função biológica, e não é uma “coisa inerente ao ser mulher”. É uma experiência que pode ser altamente variável e significar reações diferentes para pessoas diferentes. Não é necessário diferenciar partes do corpo ou funções corporais. Podemos desmistificar e desestigmatizar a menstruação sem excluir ninguém.

Mas por quê discutir tudo isso? Exatamente porque precisamos que toda a sociedade compreenda que a diversidade compõe a humanidade e colabora para tornar o convívio social seguro e acessível a todas as pessoas que escapam à norma. E se abrir para novos debates como o uso da linguagem de forma mais humanizada e conhecer novas perspectivas sobre os direitos humanos de grupos vulnerabilizados que enfrentam processos de extrema invisibilização é necessário para efetivar a inclusão de todes.

No passado, as feministas eram ridicularizadas por exigirem mudanças na linguagem sexista, mas agora – apesar de alguma resistência – está nítido que os pronomes masculinos genéricos não são mais usados uniformemente por falantes e escreventes cultos/cultas para se referir a mulheres. E no mesmo sentido, vemos posta uma verdadeira guerra cultural entre que entende a importância do uso de uma linguagem inclusive e humanizada, e aqueles que se recusam a avançar junto a sociedade contemporânea, muitas vezes defendendo o direito de seguirem sendo ignorantes.

Porém, essa recusa traz danos reais há alguns grupos. O uso devido de pronomes e de uma linguagem não sexista e inclusiva garantem não apenas um tratamento interpressoal digno e respeitoso, mas assegura que essas pessoas terão acesso a direitos, sobretudo direitos humanos e isso não pode ser negociável.

(Ilustração: Bruna Benevides)

Pode parecer estranho agora dizer “pessoas que menstruam” mas isso é como mudar outra linguagem tendenciosa. É mais preciso do que dizer apenas “mulheres” e usar um termo sem gênero também ajuda a disponibilizar informações vitais sobre saúde para todos que delas precisam — independentemente do gênero.

Mesmo que pretendam ser mais inclusivos, frases como “genitália feminina” ou “pessoa com corpo feminino” são negacionistas para a existência de algumas pessoas trans. Esses termos podem rotular os corpos das pessoas de maneira com que não se identificam e podem ser difíceis de substituir, mas não são impossíveis. Qual termo é mais apropriado e respeitoso depende muito do contexto.

Talvez você queira dizer algo para as pessoas que têm uma parte específica do corpo, como “pessoas com vulvas” ou “pessoas com colo do útero”. Talvez você esteja falando de pessoas que têm corpos que funcionam de uma certa maneira: “pessoas que podem engravidar”, “pessoas que tem testículos ou próstata” ou “pessoas que menstruam”. Depois, há aqueles afetados por certos procedimentos médicos: “pessoas que precisam de mamografias”, são alguns exemplos.

Outra opção é discutir o tema sem se referir a um determinado grupo de pessoas. Podemos simplesmente dizer “os exames de papanicolau devem ser feitos regularmente” ou “coletores menstruais podem ser usadas em vez de absorventes ou tampões para coletar sangue menstrual”. Dessa forma, as pessoas podem ler a declaração e aceitá-la como relevante ou irrelevante para elas, sem precisar se identificar com um determinado gênero ou grupo.

As pessoas que não se enquadram na definição comum de “mulheres” podem tornar-se facilmente isoladas, marginalizadas, estigmatizadas e discriminadas, podendo desenvolver doenças ou ter agravos em sua saúde física e mental ao serem submetidas ao uso sexista binário da linguagem. Quando as doenças e os problemas de saúde são marcados pelo gênero, torna-se mais difícil para as pessoas não binárias, transmasculinas e/ou intersexo acessar os cuidados de saúde.

Nossos corpos não determinam nossas identidades e somos muito mais do que meros corpos. Somos seres complexos e o cuidado em saúde deve contemplar nossa integralidade enquanto sujeitos. É importante que nós tenhamos um contexto para nossas experiências e uma maneira de falar sobre elas. Podemos fazer parte da mudança do diálogo sobre menstruação e, por extensão, sobre saúde. Pessoas de todos os gêneros menstruam, e o acesso sem barreiras a suporte e informações beneficia a toda sociedade.

*Kaleb Salgado é não binárie, estudante de Pedagogia na UNB, membro do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, e é uma pessoa que menstrua

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Um comentário em “E a polêmica das pessoas que menstruam?

  1. Observador disse:

    Em pleno Século XXI, o tema absorvente ter que vir a tona, demonstra a que estado de pobreza o Brasil alcançou e claro o próprio SUS, já que o ciclo menstrual negligenciado afeta a saúde física e mental da mulher! Aqui em Floripa, uma “moradora” de rua deu a luz, foi socorrida por “vizinho” que tirou o casaco que vestia para evitar a hipotermia ao recém nascido! Depois desses procedimentos iniciais que a Guarda Municipal levou mãe e filho a maternidade para avaliação médica!

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