Nos últimos anos, temos observado uma imensa movimentação em torno de pessoas trans no debate público. Jornais, revistas, filmes, novelas e outras produções tem cada vez mais jogado luz sobre essas existências. E quanto mais a “diferença” que essa parcela da população traz se torna aparente nas esferas sociais, diversos incômodos passam a sair do armário para reafirmar posições problemáticas que antes eram até bem aceitas, mas que hoje já enfrentam resistência e a produção de contra-narrativas que pretendem delinear um caminho bem menos violento e árduo que outrora, embora ainda cercado por violências.
A violência contra pessoas trans se fez ainda mais presente no mesmo momento em que os discursos de ódio passaram a ocupar de forma mais frequente as redes sociais, o ambiente político e o próprio Estado de forma mais incisiva – e seguimos sem respostas efetivas para erradicar a violência contra pessoa trans. São inúmeras as mobilizações de grupos que, de alguma forma, se sentem ameaçados pelo avanço e conquista de direitos por parte da população de travestis e demais pessoas trans, organizando um levante contra a própria existência desses corpos dissidentes. E temos nos perguntado: quem realmente acredita que um grupo tão pequeno numericamente seria capaz de fazer frente a um grupo majoritário e muito maior como o de mulheres ou homens que não são trans? A quem ameaça a cidadania de pessoas trans? Quais os reais interesses em manter pessoas trans marginalizadas?
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Ainda não chegamos as respostas, mas já identificamos que são pessoas empenhadadas em gerar um ambiente propício para tensionar os limites da liberdade de expressão a fim de criar e publicar confusões e falsas polêmicas fundadas em informações sem qualquer relevância cientifica ou materialidade na vida off-line. Exatamente porque a defesa de seus pontos requer uma dinâmica muito rebuscada e organizada para bombardear o ambiente virtual de fakenews e criar um labirinto de falsas teorias dignas de filmes de ficção para que fique parecendo que aquilo que estão dizendo é uma realidade e que, por isso, deveria haver maior engajamento da sociedade.
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Veja o que já enviamosForam exatamente os discursos de pessoas que não são trans que criaram esses mitos sobre pessoas trans. E o que nós, enquanto pessoas trans, ativistas e pesquisadoras, temos feito é lutar para desfazer as tentativas que se alternam entre a patologização, a demonização e criminalização dessas identidades, às vezes operando conjuntamente no sentido de desumanizar ou posicionar pessoas trans como uma ameaça real, ignorando o fato de que é a população trans um dos grupos que enfrenta processos de desumanização e violência em nossa sociedade.
Muitas narrativas têm sido usadas de forma a direcionar ódio, gerar violência, perpetuar estigmas e a negação de acesso a espaços, direitos básicos ou até mesmo levar pessoas trans a serem suicidadas – autoextermínio como consequência de um ambiente social tolerante à discriminação contra as pessoas trans. E, no bojo dessa discussão, encontramos uma intensa mobilização para a manutenção de um modelo de sociedade que acredita realmente que qualquer avanço da cidadania ou de direitos de grupos minorizados faria retroceder os direitos de outros grupos.
Ao contrário do que algumas pessoas tentam fazer parecer, não somos perigosas; estamos em constante perigo devido aos riscos que pessoas cisgêneras (não trans) oferecem a pessoas trans. Não o contrário. Afinal, mulheres trans usando o banheiro feminino são uma ameaça real ou apenas um espantalho para causar pânico moral e gerar mais ódio contra elas? Impedir mulheres trans de usar o banheiro vai efetivamente contribuir para a proteção das mulheres que não são trans? Por que não temos sido capazes de pensar alianças entre pessoas trans e não trans que possam proteger todas as crianças e todas as mulheres?
Diariamente são gerados um emaranhado de informações onde sequer é possível alcançar suas bases e fontes reais, fazendo com que os leitores mais descuidados acabem por aceitar que aquilo é de fato um argumento legítimo. O que, no caso de pessoas trans, acaba por mobilizar grupos com ideais antitrans, que, em muitos casos, divergem entre si sobre pautas como o aborto, o casamento e a própria heterossexualidade como norma, mas que a repulsa contra a existências de pessoas que colocam em cheque a sua própria noção de “normalidade” precisa ser enfrentada a todo custo.
A solução para esse enigma é esta: nós, como sociedade, precisamos reajustar nossa ideia de gênero baseado apenas nas experiências de pessoas que não são trans para sermos verdadeiramente inclusivos, não exclusivos/excludentes. Precisamos adotar uma linguagem inclusiva porque, se não houver mais categorias cristalizadas de gênero binário (masculino e feminino), ninguém pode ser prejudicado por esses rótulos, suas tecnologias e exclusões. A igualdade de gênero para incluir pessoas transgêneras não é uma tentativa de apagar o binário. A ideia não é se livrar do masculino e do feminino, mas sim ampliá-lo para incluir outras identidades que vão além dessas categorias e fazer com que sejam igualmente válidos e tenham os mesmos direitos.
E nós, como sociedade, precisamos parar de policiar os corpos e identidades uns dos outros porque isso é o que realmente coloca as pessoas em risco. E precisamos parar de debater sobre regras sociais antiquadas quando o argumento é simplesmente um veículo para perpetuar a transfobia e o ódio. Se você olhar para os problemas como eles são, e deixar de lado o medo, você verá pessoas reais que só querem viver em paz, ter sua liberdade e a garantia de direitos básicos assegurados, além de fazer xixi sem serem vítimas de violência.
Estamos no mês da visibilidade trans, onde é celebrada a luta por direitos, cidadania e respeito para a população de Travestis, mulheres e homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias. A data nacional da visibilidade trans é comemorada todo 29 de janeiro e remete a um fato histórico: um grupo de travestis da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), ocupou a Câmara dos Deputados para exigir direitos no ano de 2004. E passou a fazer parte do calendário com o lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, em parceria celebrada entre a ANTRA e o Departamento de HIV/AIDS.
De lá pra cá, muita coisa mudou. Pessoas trans tiveram algumas conquistas e houve alguns avanços também na forma com que a sociedade se relaciona com essas pessoas. Acontece que, como nem tudo são flores, o Brasil segue com o país que mais assassina pessoas trans do mundo há 14 anos consecutivos – de acordo com a ONG Transgender Europe – e, em 2022, também acumulou novamente o titulo de país que mais consome pornografia trans. Um paradoxo completo.
São 19 anos de visibilidade e ainda restam muitos desafios. Pesquisas recentes demonstram que jovens trans estão menos otimistas sobre o futuro e cabe a nós, a mim e a você que agora me lê, mudar essa realidade diariamente e em todos os lugares. Para que tenhamos um país em que as pessoas trans possam viver, ser livres e ter dignidade.
Eu acredito!