A arte é viva. Quando um produto cultural é lançado no mundo, boa parte da energia que o mantém a pulsar vem das apropriações e interpretações feitas pelo público – embora não exclusivamente, ressalte-se. Por isso, não é raro que um filme mude de gênero a partir de sua fruição pública. Pense bem: slashers de terror tão toscos que acabam se enveredando para a comédia; pastelões que acabam emocionando mais que dramas… e por aí vai.
Recentemente, vimos o filme Barbie, da diretora Greta Gerwig, pintar de rosa – literalmente – todas as esferas possíveis da vida, das redes sociais aos mais variados nichos da indústria (ontem vi o TikTok de uma ginecologista dublando a música-tema enquanto fingia – assim espero eu – fazer um preventivo uma paciente). O marketing de forma alguma foi uma campanha de divulgação apenas do filme, com produtos licenciados de toda espécie sendo lançados e as ações da Mattel, fabricante da famosa boneca, subindo como nunca nos últimos anos. Nada do que se vê no capitalismo é espontâneo, muito menos a nostalgia da Barbie.
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O que aconteceu, de fato, espontaneamente foi a transição de gênero do filme, de uma comédia ficcional para documentário. Segurando muito meus dedos para não dar spoiler a quem ainda não assistiu o longa, Barbie trata de um mundo perfeito, em que as bonecas não só podem fazer, como fazem tudo: são presidentas, pilotas, astronautas, mães, escritoras, ganhadoras de Nobel… e todas as grandes referências mundiais na História são femininas. E o Ken… é só o Ken, igual a todos os outros, que vive somente em função de ser o par da Barbie.
Uma fina ironia ao patriarcado (com referências que vão de cavalos ao “O Poderoso Chefão”) pela caricatura de seu inverso, um alívio cômico muito bem roteirizado para a realidade de ser mulher, em que nada basta para ser boa o bastante. Para isso, só sendo homem (branco, cis, hétero, velho e rico, por favor). Pois bem.
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Veja o que já enviamosNas primeiras horas depois do acesso do público à estreia, pipocaram posts de repúdio ao filme nas redes sociais. De vídeos-pleonasmo em que pais e mães absurdados alertavam que “não era filme para criança”, apesar de a classificação indicativa brasileira já dizer isso, ao não recomendar “Barbie” para menores de 12 anos. Por sua vez, fanáticos religiosos condenaram o filme por não ter valores cristãos – talvez estejam torcendo pela adaptação cinematográfica depois do lançamento da Barbie Bruxa, que vem com um lança-chamas de brinde, para queimar sua própria boneca. Mais cristão impossível.
Mas, de longe, as reações mais tragicômicas são as de marmanjos indignados com a obra “anti-homem”, com “críticas” extremamente maduras como a avalanche de tweets chamando a protagonista Margot Robbie de feia ou “mediana”. Podcasts desaplaudidos de machos legalmente adultos (mentalmente, é impossível afirmar) com camisetas de bonequinhos falam sobre o absurdo da agenda “claramente feminista” do filme, acusando-o com o adjetivo mais elaborado que conhecem: “lacrador”. Quase chorando por um deboche com a masculinidade que nem novidade é, e que Os Simpsons vêm fazendo por décadas via Homer. Mas o famoso cartoon é uma criação de um homem branco, um igual. Burramente como era de se esperar, jamais os homers da vida entenderiam seu alter ego da animação como crítica.
Hollywood vem objetificando, invisibilizando e estereotipando mulheres desde seu advento, inclusive em seu papel de indústria. De acordo com o relatório anual The Celluloid Celing, que investiga a empregabilidade de mulheres na indústria cinematográfica, dentre os 250 filmes com maior bilheteria de 2022, 80% não tinha diretoras. E tem mais: destes 250, 93% não tinha diretoras de fotografia, 75% não tinha editoras e 70% não tinha roteiristas mulheres.
O levantamento traz outro dado importante e doloroso: ninguém faz mais pelas mulheres do que elas próprias. Filmes com pelo menos uma diretora possuem uma equipe feminina maior. Em 2022, as produções com pelo menos uma mulher na direção possuíam equipes de roteiristas 53% femininas e o índice era de 39% no time de montagem. Em filmes dirigidos por homens, estes percentuais eram de 12% no roteiro e 19% na montagem. Isso tudo atrás das câmeras.
À frente delas, é ainda mais fácil perceber o abismo na representação feminina, com personagens que nos pintam, desde sempre, como burras, interesseiras, histéricas, loucas e (insira aqui o estereótipo que quiser), em personagens escritos, dirigidos e contextualizados por homens.
Bastou um filme de equipe e elenco majoritariamente feminino parodiar essa desigualdade para ser tachado de máquina de moer homem. E fazê-lo buscando, ainda, exaltar feminilidades diversas: negra, trans, com deficiência, gorda, oriental, maneiras de ser mulher que normalmente não possuem legitimidade no cinema. O terror do macho absolutamente medíocre que se crê alfa, pelo simples fato de existir. “Buááááá, lacração!”
Barbie está longe de ser um longa propriamente feminista, primeiro porque é uma produção hollywoodiana, essencialmente capitalista, e não há feminismo possível sem o questionamento do capitalismo e suas estruturas opressoras de classe, gênero e raça. Não dá pra boneca da Mattel ser um ícone da transformação social para mulheres quando, por exemplo, a maioria das meninas do mundo sequer tem acesso a ela. Mas isso é um fato com muitas camadas de análise, e não um demérito do filme em si.
Eu particularmente aplaudo a repercussão de uma semente plantada em uma sala de cinema que, apesar de não mudar o status quo, faz quem sempre se beneficiou dele soluçar como uma criança mimada contrariada. A masculinidade não aguenta duas horinhas sem seu desmerecido protagonismo que já esperneia.
O maior deslize de Barbie é não indicar que o Ken é documental – ou baseado em machos reais e, como é comum em Hollywood, interpretado por alguém muito mais bonito.