Cerca de 200 milhões de mulheres ainda são mutiladas, hoje, no mundo

Mulher veste uma camisa com os dizeres “Não à mutilação genital feminina” durante uma manifestação para defender os direitos das mulheres no Dia Internacional da Mulher, em Marselha, sul da França: mais de 200 milhões de mulheres ainda são mutiladas hoje no mundo (Foto: Bertrand Langlois / AFP)

Apesar dos apelos e das campanhas internacionais, Mutilação Genital Feminina (MGF) segue sendo praticada em mais de 90 países

Por Alexandre dos Santos | ODS 5 • Publicada em 8 de março de 2022 - 09:05 • Atualizada em 1 de dezembro de 2023 - 18:16

Mulher veste uma camisa com os dizeres “Não à mutilação genital feminina” durante uma manifestação para defender os direitos das mulheres no Dia Internacional da Mulher, em Marselha, sul da França: mais de 200 milhões de mulheres ainda são mutiladas hoje no mundo (Foto: Bertrand Langlois / AFP)

“Só uma mulher cortada é uma boa mulher.” – diz a atriz e modelo etíope, Liya Kebede, em um dos diálogos mais importantes do filme “Flor do Deserto” (2009, dirigido por Sherry Hormann).

Ela divide a cena, um quarto de uma hospedaria em Londres, com a atriz Sally Hawkins, que pergunta “Cortada? Como?”

Kabede, que interpreta a modelo somali Waris Dirie, reponde: “É assim que ela (a vagina) fica virgem, não é? Até a noite de núpcias. E aí o marido abre ela. É assim, não é?”

Na sequência da cena, Kabede/Dirie explica que foi “cortada” aos três anos e que uma das irmãs só passou pelo “procedimento” aos oito porque a família não havia encontrado uma midgaan, como ela se refere à mulher responsável pelo ritual e o procedimento da Mutilação Genital Feminina (MGF).

Quando Waris Dirie decidiu revelar que havia sido “infibulada”, o processo mais radical da MGF, em uma entrevista à jornalista Lara Ziv, da revista Marie Claire, em 1996, causou surpresa e choque em iguais quantidades. Ela, que já era uma supermodelo internacional no auge da carreira, trouxe para o centro do debate um assunto tratado como tabu até então: os rituais de remoção de parte ou da totalidade dos lábios vaginais e do clitóris. Feitos muitas vezes sem anestesia. Em alguns casos, como o da própria Dirie, a midgaan costura a vulva, deixando apenas um pequeno espaço para a passagem da urina e do líquido menstrual. É a chamada “infibulação”.

“Uma das minhas irmãs mais novas e duas primas morreram em consequência da circuncisão. (…) É impossível escapar. Eles te agarram, amarram e fazem. Acham que se você não for circuncidada vai dormir com qualquer um”, disse ela na entrevista de 1997.

Desde a corajosa revelação de Waris Dirie a Mutilação Genital Feminina se tornou um dos assuntos prioritários do Unicef e de muitos governos na Europa e na América do Norte. De acordo com dados do próprio Unicef, nos últimos 30 anos houve uma diminuição nos casos de MGF no mundo. Mas o declínio é desigual pois nem todos os países conseguiram diminuir a prática, mesmo aprovando leis que criminalizam a mutilação feminina.

O Unicef estima que haja, ainda hoje, cerca de 200 milhões de mulheres e meninas vítimas da MGF em todo mundo e que, a cada ano, cerca de três milhões de meninas estejam em risco de sofrer mutilações genitais, geralmente antes de completar 15 anos. Em muitos casos o procedimento é feito sem os cuidados mínimos de higiene e pode levar à morte por hemorragia. Foi o que aconteceu com Fartun Hassan Ahmed, de 13 anos, filha de pastores nômades do interior da Somália, que sangrou até a morte depois do ritual de infibulação, em julho de 2021. O caso de Fartun reacendeu a discussão de uma década a respeito da votação de uma lei que criminalize a MGF. O Unicef estima que 98% das mulheres sofreram algum tipo de mutilação genital, como Waris Dirie em 1968.

Protesto em Madri contra a mutilação de mulheres. Foto Juan Carlos Lucas/NurPhoto via AFP
Protesto em Madri contra a mutilação de mulheres: mais da metade das vítimas vive no Egito, na Etiópia e na Indonésia (Foto: Juan Carlos Lucas / NurPhoto / AFP)

Mesmo com números tão assustadores, a Somália não é o país com o maior número de casos. Das 200 milhões de mulheres e meninas que sofreram algum tipo de mutilação, mais da metade das vítimas vive no Egito, na Etiópia e na Indonésia. A prática foi identificada em várias regiões do planeta desde a América do Sul (Colômbia), passando pela África Ocidental e Oriental, Oriente Médio e Ásia. Há casos de práticas de MGF entre a população imigrante nos EUA, Europa, Austrália e Nova Zelândia. Acredita-se que esteja presente em cerca de 92 países.

“É uma prática que segue valores e tradições de algumas comunidades. Trata-se na verdade de uma violação de direitos humanos, sem nenhum tipo de benefício no campo da saúde”, diz Elizeu Chaves, ex-assessor sênior do UNFPA (O Fundo das Nações Unidas para as Populações). “Apesar da maioria dos casos ocorrer na África, a prática acontece em nações do sudeste-asiático e até da América Latina. A comunidade indígena Emberá, da Colômbia, por exemplo, acredita que a mutilação genital feminina ajuda a prevenir a infidelidade”, acrescenta ele.

Esse é apenas um dos motivos pelos quais a ONU trata o combate à Mutilação Genital Feminina como uma questão global de saúde pública, além de reconhecer como uma violação dos direitos humanos. Desde 2008 as Nações Unidas, em conjunto com o UNFPA e o Unicef, estabeleceram o ano de 2030 como o da “erradicação total” da MGF e incluíram o combate a ela, em 2015, como uma das metas inclusas no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de número 5, que preconiza a igualdade de gênero: “Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e envolvendo crianças, bem como as mutilações genitais femininas.”

Desde 2012, o dia 6 de fevereiro foi adotado como o Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, data aprovada por unanimidade em votação da Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução 67/146). Em 2021, o secretário geral, António Guterres, conclamou uma ação global para acelerar o investimento a fim de erradicar a MGF até 2030. “Todos os anos, mais de 4 milhões de meninas estão em risco de serem submetidas a esta forma de violência extrema. Infelizmente, a pandemia da covid-19 teve um impacto nos serviços de saúde e as colocou ainda mais em perigo”, disse Guterres em seu discurso. E mais: “As Nações Unidas e os seus parceiros estão a apoiar iniciativas que procurem mudar as normas sociais que perpetuam esta prática. Os jovens e a sociedade civil estão a fazer ouvir a sua voz e os legisladores estão a avançar com mudanças positivas em muitos países.”

Um estudo feito pelo próprio Unicef aponta a eficácia do que o secretário geral diz. Em todos os países onde o esforço conjugado entre as agências da ONU, ONGs e sociedade civil foi apoiado pelo governo, principalmente nas áreas da Educação e da Assistência Social, o número de meninas e mulheres entre 15 e 49 anos que já ouviram falar na prática da MGF e a condenam é superior a 60%.

Fonte: Unicef

O caminho de acolher mulheres e meninas que sofreram com a circuncisão genital feminina foi aberto por Waris Dirie em 2002, quando ela criou a Desert Flower Foundation (DFF) em Viena, Áustria, para onde havia se mudado e mora até hoje. A ONG também liderou uma campanha internacional contra a mutilação genital, organizando protestos e campanhas exigindo um posicionamento dos países da União Europeia para que aprovassem legislações que proibissem a prática entre as populações imigrantes e tornasse os temas MGF e “casamento precoce” questões a serem debatidas nas escolas. Dirie criou um braço da DFF para angariar fundos a serem enviados especificamente a escolas e clínicas médicas e de saúde primária na Somália, Desert Dawn. Pela coragem e o trabalho pioneiro ela foi nomeada Embaixadora da Paz e Segurança pela União Africana, em 2010.

O exemplo da supermodelo somali trouxe de vez o assunto para a agenda social e política não apenas da ONU e dos países do hemisfério norte, mas também influenciou outras lideranças em todos os cantos do planeta. O exemplo serviu de inspiração para a atual reitora da Universidade de Saint Andrews, na Escócia, a psicoterapeuta e também somali Leyla Hussein, a primeira mulher negra a assumir o posto em uma instituição na Escócia em pouco mais de seis séculos. A doutora – e reitora – Hussein, que também foi vítima da MGF, se inspirou no exemplo de Dirie para criar o Projeto Dahlia, pioneiro em todo o Reino Unido no acolhimento e assistência médica e psicológica a mulheres e crianças vítimas de algum tipo de MGF. Por esse trabalho ela recebeu o título de integrante da Ordem do Império Britânico, das mãos da própria rainha Elizabeth II.

A Miss Tanzânia 2016, Diana Edward, usou a fama que conquistou assim que recebeu o título para alertar a audiência que a assistia para a prática e também para exigir das autoridades de seu país que tomassem alguma providência a respeito. Ela, que é da etnia maasai, montou uma série de projetos intitulados “Alerta ao Corte” que visam não apenas exigir que uma legislação mais rígida seja aprovada pelos legisladores, mas que toda a comunidade seja envolvida em projetos de educação e conscientização. “Essas são práticas milenares e não podem ser mudadas só porque um sujeito mandou parar”, diz ela. “A MGF só vai parar quando a gente envolver toda a comunidade”.

O que Diana Edward defende pode ser visto, na prática, dando frutos, em uma comunidade maasai que vive no vizinho Quênia. No condado de Kajiado, na região central do país e que faz fronteira com a Tanzânia, dois projetos mudaram completamente a maneira como os rituais sociais são feitos. Os projetos foram implementados em duas frentes, um trabalho de conscientização entre os homens e que começou com os jovens maasai. E outro focado nas mulheres e meninas da região.

No fim de fevereiro de 2021, cerca de 400 maasais participaram de um novo ritual social de passagem da infância para a vida adulta. Em vez de serem submetidas à circuncisão feminina, prática tradicional, elas foram protagonistas de um ritual alternativo que mantém praticamente todos os passos do antigo, com exceção, claro, da cerimônia em que se realizavam as MGFs. Durante os quatro dias as “novas adultas” recebem todos os ensinamentos referentes às regras sociais do novo grupo do qual farão parte, somadas a novos saberes como gravidez na adolescência e saúde reprodutiva. O ponto alto da tradição são os festejos no fim do quarto dia. Desta vez toda a aldeia celebração e festeja o momento em que as adultas apagam suas respectivas velas, que representam – ao mesmo tempo – o ato de deixar para trás a infância a de substituição das antigas práticas da mutilação genital feminina.

Alexandre dos Santos

Jornalista formado pela Uerj em 1996 e mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Trabalhou como repórter em jornal impresso e em TV. É professor de História da África no curso de Relações Internacionais da PUC-Rio. Carioca de muitas ascendências: camaronesa, angolana, portuguesa e espanhola. E-mail: alexandredossantos@me.com. Instagram: @alsantos72

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile