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A liberdade é roxa

Romper com certos silêncios também significa aceitar que, vez ou outra, a gente se machuca no caminho

ODS 5 • Publicada em 13 de maio de 2025 - 09:41 • Atualizada em 13 de maio de 2025 - 09:42

Terminei “Melhor não contar”, da Tatiana Salem Levy, com uma sensação estranha de companhia. No livro, ela fala sobre a dor de um abuso que sofreu e decidiu esconder da mãe, e o quanto esse segredo – e o próprio abuso – impactou todas as fases de sua vida. Faz a gente pensar em todas as violências que a gente, como mulher, sofre nesse processo “simone-de-beauvouriano” de “tornar-se”. E o quanto a sociedade nos ensina que estas dores devem ficar no privado, varridas para debaixo de um tapete que cobre tudo aquilo que “pode destruir a vida de um cara”. Mas esconder não destrói a nossa?

Leu essa? Pelo direito inalienável das mulheres a uma vida que preste

Além disso, uma passagem, que fala sobre o hábito de escrever diários, comum entre meninas, me pegou de forma especial. Talvez porque eu sempre tenha encontrado na escrita uma forma de domar as palavras de maneira que eu nunca consegui com a fala. Tanto que fiz disso ofício, e ainda hoje sinto que enquanto enfileirar letras, meus pensamentos e sentimentos são mais fiéis ao que eu gostaria de dizer e, em minha voz, acaba sendo atropelado. De guardar as coisas num canto seguro, longe demais dos olhos e perto o bastante da pele.

“Ser mulher exige algum nível de contenção. De vigilância. De silêncio, dos menores aos maiores” (Arte: Freepik)

Tatiana fala sobre como o diário, como tantas outras coisas ensinadas às mulheres, tinha um quê de silêncio disfarçado. Um “pode sentir, mas não muito”. “Pode falar, mas só se ninguém ouvir”. Pensei em todas as cartinhas que escrevi para mim mesma, tentando ordenar a pororoca de sentimentos da adolescência, e também nas que escrevi para paixõezinhas juvenis, que nunca encontraram seu destinatário. Estes, por sua vez, também jamais ouviram de mim o que minha caligrafia revelava.

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É o que a sociedade espera que façamos. Ser mulher exige algum nível de contenção. De vigilância. De silêncio, dos menores aos maiores. “Isso não é assunto de mulher”. “Isso é frescura de mulher”. “Se ele souber que você gosta dele, vai te ignorar”. “Ninguém vai acreditar em você”. “Agora tudo é abuso”. “Se você contar para alguém, eu te mato.” “Você sabe com quem tá falando, menina?” E tantas outras frases, dicas, ameaças, conselhos e violências vão sugerindo ou ordenando que a gente se cale. Ou que fale tudo a diários escondidos em gavetas e trancados a cadeado. Desde meninas.

E é por isso, acredito eu, que a gente deve se apegar a cada faísca de liberdade que passa diante de nós. Como o proverbial cavalo selado, pode ser que a chance de ser livre não nos atravesse o caminho duas vezes. E, assim, vamos achando brechas, ficando atentas. A menina que fui, ao mesmo tempo que se escondia em cartinhas não entregues e diários, vivia com os joelhos ralados. Hoje, sou uma adulta cheia de roxos, por todo o corpo. A maioria não sei como vieram me colorir a pele.

Hipocondríaca – quase sempre – recreativa que sou, já me preocupei bastante com eles. Achei que fossem sinal de doença, falta de vitaminas ou algo do tipo. Mas agora sei: são vestígios de um corpo que aprendeu, a duras penas, a existir sem pedir desculpas.

Esses roxos vêm de me bater contra quinas e maçanetas porque, literalmente, não consigo caber em mim. Vêm de viver uma liberdade que não me foi dada — foi herdada em pedaços, conquistada com o silêncio e o sacrifício de tantas outras. mulheres Minha avó, minha mãe, e tantas outras mulheres que precisaram, em tantos momentos, se conter: por questões geracionais, raciais, de classe, por sobrevivência, por medo, ou pelo que quer que fosse. Nos silêncios das que não puderam escrever ou falar, nas concessões feitas por quem precisou caber no mundo sem alarde.

Penso muito nisso quando vejo como algumas liberdades que hoje parecem naturais foram, há pouco tempo, impensáveis para outras mulheres, e que para tantas outras, seguem sendo utopia. Mesmo para mim, e para mulheres que têm o mesmo privilégio, os limites dessa liberdade ainda são testados o tempo todo. Às vezes, por nós mesmas. Outras, pelas estruturas que seguem tentando ensinar que ocupar espaço ainda é demais.

Por isso sigo escrevendo e toda roxa, um ímã de quintas, cantos, e beiras. Acho que tem algo valioso em reconhecer que nem toda marca precisa ser curada. Talvez um jeito de elaborar o que o corpo sente antes da cabeça entender. De transformar uma dúvida em argumento, um desconforto em pergunta, um roxo em sinal.

Porque romper com certos silêncios também significa aceitar que, vez ou outra, a gente se machuca no caminho.

Mas, no fim, talvez esses roxos sirvam pra isso mesmo, como um post it de nós para nós, lembrando que só há liberdade no movimento.

E isso é assustador e maravilhoso.

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