Volta às aulas divide moradores de favelas e da periferia

Funcionário do Distrito Federal desinfeta uma escola pública como medida contra a disseminação do novo coronavírus. Foto Evaristo Sá/AFP

Ausência de condições para estudar remotamente e de manter uma quarentena segura são os principais argumentos a favor do retorno às aulas presenciais

Por Edu Carvalho | ODS 4 • Publicada em 26 de agosto de 2020 - 08:31 • Atualizada em 1 de setembro de 2020 - 10:55

Funcionário do Distrito Federal desinfeta uma escola pública como medida contra a disseminação do novo coronavírus. Foto Evaristo Sá/AFP

Depois de cinco meses, 3,5 milhões de casos e 114 mil mortes, os brasileiros seguem discutindo como recuperar um pouco da velha normalidade perdida. Ver os estudantes de volta aos bancos escolares, sem dúvida, é uma parte fundamental do debate. Mas como fazer isso sem expor crianças, jovens e adultos a um risco ainda maior de agravamento do surto do coronavírus no Brasil?  Outra questão central é avaliar o impacto dessa decisão em um país extremamente desigual como o nosso. Afinal de contas, uma coisa é manter em casa um aluno com condições para ter aulas remotas, com um computador disponível, banda larga, conforto, a vigilância dos pais, avós ou de uma babá, água corrente para lavar as mãos, álcool gel e três refeições diárias.

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Pais e alunos, todos estão loucos para voltar, e por diversos motivos. Os pais, sobretudo, precisam trabalhar e muitos não estão dando conta. Se é uma casa onde o espaço é pequeno e são três ou quatro crianças, fica ainda mais difícil

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Para milhares de crianças e jovens que vivem em favelas e áreas de periferia a situação é bem diferente e torna o debate sobre voltar ou não às aulas ainda mais complicado. Nestas regiões, computador e banda larga seguem sendo artigos de luxo. Pais, mães e avós precisam sair para trabalhar e buscar o sustento da família, algumas vezes trabalhando como empregadas ou babás de crianças e jovens das famílias de classe média. A água corrente, o álcool gel e as três refeições diárias são artigos raros em muitos endereços. Assim, neste mundo que nunca teve nada de normal, os meses de pandemia são passados nas ruas e vielas, bem longe de qualquer coisa parecida com isolamento e segurança.

Diante deste cenário, as perguntas e análises sobre vantagens, desvantagens, riscos e oportunidades da volta às aulas presenciais mudam consideravelmente. Para Rene Silva, comunicador e fundador do jornal Voz da Comunidade, no Complexo do Alemão, a resposta é clara: “É difícil e delicado falar deste assunto, mas acho que é o momento de voltar às aulas na escola pública, com todos cuidados possíveis e necessários. Minha grande preocupação é com a vulnerabilidade dessas crianças da favela e os riscos a que estão sendo expostas em diversas situações’’.

Para Rene Silva, fundador do jornal Voz da Comunidade, no Complexo do Alemão, "o momento é de voltar às aulas na escola pública, com todos cuidados possíveis e necessários". Foto Custódio Coimbra
Para Rene Silva, fundador do jornal Voz da Comunidade, no Complexo do Alemão, “o momento é de voltar às aulas na escola pública, com todos cuidados possíveis e necessários”. Foto Custódio Coimbra

Em uma série de posts na sua página no Twitter, Rene Silva enumera fatores como a falta de comida dentro das casas, a falta de gás, o acesso à internet e a violência doméstica. Na Rocinha, a professora do CIEP Bento Rubião Ana Luiza Marques faz coro com o comunicador do Alemão: “Pais e alunos, todos estão loucos para voltar, e por diversos motivos. Os pais, sobretudo, precisam trabalhar e muitos não estão dando conta. Se é uma casa onde o espaço é pequeno e são três ou quatro crianças, fica ainda mais difícil’’, conta a professora da rede municipal (2º ano – Ensino Fundamental), com 32 alunos na faixa etária de sete a oito anos.

Ana Luiza explica que a comunidade está sem aula desde março e que o acesso aos pais e alunos ficou impossibilitado por conta da quarentena: “No início eu mandava as atividades, mas tem gente que tem muita dificuldade com a internet. Como tenho relação muito boa com os pais, resolvi tirar um dia no mês para o encontro na porta da escola’’. Nessa “aula informal’’, Ana leva atividades já preparadas e recolhe aquelas que foram feitas em todo o período do mês anterior. O dia escolhido é o domingo, “por ser um dia em que a maioria pode estar lá’’.

Ana também faz ponderações sobre a transferência para os pais da decisão de autorizar ou não os filhos a irem à escola: “Não é uma questão de o pai ser maluco ou não, amar o filho ou não. Realmente, ele está precisando trabalhar e a criança na escola almoça, lancha, toma café da manhã… Além disso, existe o sentimento de que, na prática, a maioria das pessoas não está respeitando o isolamento. A abertura das escolas pode ser um enorme alívio: Poxa, posso deixar meu filho e ele não vai ficar na rua brincando’’. Segundo o Painel Coronavírus nas Favelas, publicado pelo site Voz das Comunidades, a Rocinha figura como a quinta favela com maior número de casos confirmados.

[g1_quote author_name=”Cristina Andrade ” author_description=”Professora em São Gonçalo” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Não existe condição, ninguém deveria voltar às aulas enquanto não houver uma vacina. As crianças se aglomeram, se tocam, se beijam, não vão conseguir manter a máscara no rosto, as salas não são arejadas

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Dilane Sousa é mãe de Daniel, aluno de Ana Luiza, e discorda sobre a volta do filho à sala de aula. “Para falar a verdade, eu não espero que as aulas voltem.  Eles já perderam muito tempo, o que poderiam aprender no final do ano letivo?’’, questiona. Dilane e Daniel não tiveram contágio com o vírus, mas a avó da criança sim. “Foi muito doloroso pra mim, ainda tenho muito medo de que meus filhos peguem’’.

Ela avalia que uma solução cabível seria o retorno apenas em 2021, com menos riscos. “Seria uma ótima opção, pois aí sim, nós mães, ficaríamos menos preocupadas. Eles – a Secretaria Municipal de Educação – teriam que avaliar como fica a questão da aprovação’’, pondera.

Quem está do mesmo lado de Dilane é a professora Cristina Andrade, que leciona há mais de 30 anos na rede municipal de São Gonçalo. Ela atua em três escolas e conta que a passagem das aulas presenciais para plataformas digitais, mesmo depois de cinco meses, ainda enfrenta muitos problemas: “Nosso trabalho é precário. Temos crianças que não conseguem receber o exercício, professores que têm dificuldade com a plataforma criada para o conteúdo’’. Apesar disso, Cristina não tem dúvida quando indagada sobre a volta do ensino presencial: “Não existe condição, ninguém deveria voltar às aulas enquanto não houver uma vacina. As crianças se aglomeram, se tocam, se beijam, não vão conseguir manter a máscara no rosto, as salas não são arejadas’’, argumenta.

Perguntada se entraria em sala de aula, ela coloca sua saúde em primeiro lugar. Portadora de doença crônica e com pais idosos, não pensa em um retorno tão cedo. “No auge do contágio, entrei em pânico, fiquei apavorada. Alguns vizinhos faleceram, há outros que ainda estão pegando. Imagina isso? Vivo em um município de risco. Nós não sabemos como as crianças estão sendo tratadas, não sabemos se tiveram cuidado’’. Até o momento, São Gonçalo contabiliza mais de 10 mil casos confirmados e 638 mortes em decorrência do vírus.

Outra que vem sentindo os impactos desse momento é Waldineia Telles, professora de ensino religioso pela rede estadual, em Itaboraí: “Tento dialogar e pontuar com os estudantes o conteúdo trabalhado, sempre de uma forma mais lúdica, e nesse caso, comecei a gravar poemas’’, conta.

A professora também acaba discorrendo sobre os empecilhos desse período de pandemia, quando as desigualdades ficaram ainda mais evidentes. “Nem todos conseguem ter acesso à internet, telefone ou computador. São elementos primordiais para o trabalho nesse momento. Onde atuo é área de periferia e rural, ou seja, questões de localidade e socioeconômicas interferem muito, agravam essa desigualdade’’.

Waldinea diz que não teve contato com os pais dos alunos, apenas com a equipe diretiva que faz a interlocução. Dando aula para o ensino médio regular e formação de professores, faz um panorama de como vem enxergando as realidades em seu entorno: “As pessoas lidam com suas atividades cotidianas de maneira regular. Algumas usam máscaras, outras não. Os que precisam trabalhar, vão; os que estão desempregados ficam em casa. É tudo muito ‘comum’, tendo de manter suas rotinas de vida sem ter como se proteger, até porque foi propagado se que era só uma ‘gripezinha’. O município de Itaboraí registra mais de 3.800 casos e cerca de 187 mortes.

“Sinto que eles ficam angustiados, e nós professores também. Não está sendo fácil. É um vírus, nós não conhecemos e por isso a retomada precisa ser cautelosa. Sem vacina, não tem que ter retomada nenhuma’’, sentencia Waldinea.

Como forma de dar esperança para os alunos sobre a volta, Waldineia lembra aos alunos o lema aprendido com escritora americana Maya Angelou: “Deixando para trás noites de terror e atrocidade, eu me levanto. Em direção a um novo dia de intensa claridade, eu me levanto’’.

As escolas da rede municipal do Rio de Janeiro seguem sem data para retomar as aulas presenciais. A informação foi divulgada pela Prefeitura do Rio, em resposta ao decreto do governo do estado, que autorizou a retomada de aulas presenciais na rede de ensino estadual no dia 5 de outubro. Quanto às escolas particulares, o retorno foi marcado para 14 de setembro.

Na última segunda-feira, dia 17, o Instituto DataFolha divulgou uma pesquisa mostrando a opinião dos pais em relação à volta. Para a maioria dos brasileiros (79%), a pandemia do novo coronavírus pode se agravar com o retorno das aulas presenciais. A análise também mostrou que os entrevistados preferem que as unidades escolares fiquem fechadas pelos próximos 2 meses.

Edu Carvalho

Edu Carvalho é jornalista e apresentador, com passagens pela Globo, CNN e Revista Época. Ganhador do Prêmio Vladimir Herzog pelo #Colabora. É colunista no UOL Ecoa e no Maré de Notícias. Morador da Rocinha, cria do mundo

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