Sem recreio: jornadas de trabalho em tempo integral na pandemia

Menino em carroça em Belo Horizonte: Afastamento da escola gera pressão para engajamento no trabalho, comprometendo a perspectiva de futuro dessas crianças (Foto: Joana Suarez)

Com escolas fechadas e sem acesso ao ensino remoto, menores dobram tempo dedicado ao trabalho; aprendiz não é alternativa em todos os municípios

Por Lição de Casa | ODS 4 • Publicada em 25 de março de 2021 - 10:33 • Atualizada em 25 de março de 2021 - 10:54

Menino em carroça em Belo Horizonte: Afastamento da escola gera pressão para engajamento no trabalho, comprometendo a perspectiva de futuro dessas crianças (Foto: Joana Suarez)

Luiza Mussi e Equipe Lição de Casa

Para crianças e adolescentes que já tinham o trabalho como uma imposição antes da covid-19, as horas diárias debruçadas ao serviço foram intensificadas. Com o crescimento do desemprego, as escolas fechadas e sem terem como assistir às disciplinas online, muitos acabaram pressionados a ocupar o tempo participando de fato do sustento da casa.

No município de Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul, André*, de 14 anos, já ajudava o pai na lavoura no contraturno escolar e aumentou sua carga de trabalho, preenchendo os horários sem as aulas presenciais com serviço para os vizinhos. No mesmo estado, em São Luiz Gonzaga, Danilo*, de 15 anos, dobrou o expediente como ajudante de pedreiro.

Circunstâncias como essas também apareceram na dissertação de mestrado de Lucas Ávila, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). O pesquisador acompanhou, em 2020, 11 estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental, com idades entre 14 e 16 anos, da Escola Estadual José Miguel do Nascimento, uma das unidades escolares com o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) mais baixo em Minas Gerais para essa faixa etária.

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Se houvesse acesso ao ensino de qualidade, mesmo em pandemia, isso cessaria muitas outras violências

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No estudo, Lucas identificou atividades laborais durante a manhã e a tarde em 6 dos 11 entrevistados. Um deles acompanhava o tio no açougue o dia inteiro, o outro passou a seguir o pai como ajudante de pedreiro, em obras das 6h às 15h.

As conversas com os meninos mostraram que o trabalho é mais uma exigência da própria família no aumento da renda do que algo relacionado à autonomia dos sujeitos e à emancipação econômica. “A falta da presença física da escola criou a noção de que aqueles estudantes não estavam ocupados o suficiente durante boa parte do dia”, compreendeu Lucas.

Atividade laboral na pandemia não foi, para muitos, questão de escolha, mas uma imposição da família (Foto: Rodolfo Quirós)
Atividade laboral na pandemia não foi, para muitos, questão de escolha, mas uma imposição da família (Foto: Rodolfo Quirós)

Excessos Brasil afora

As cenas se repetem de Norte a Sul do país. Em Belo Jardim, Pernambuco, Victória Alvares, do Lição de Casa, conheceu Daniel*, de 16 anos. Desde que as aulas foram suspensas, ele já descarregou caminhão de fruta, fez limpeza de loja, atuou com entrega de moto, em frete de mudança e em construção civil.

A milhares de quilômetros dali, no centro do Rio de Janeiro, a repórter Bibiana Maia conheceu Caio*, 16 anos, e Jonas*, 13, vendendo doces pelas ruas. O bico, que acontecia depois da escola, passou a ser feito em tempo integral com o fechamento dos colégios: tinham que complementar a renda de casa.

A percepção de quem está em contato direto com essas famílias é de que o desrespeito aos direitos da infância cresceu com o avanço da covid-19. “Se houvesse acesso ao ensino de qualidade, mesmo em pandemia, isso cessaria muitas outras violências”, observa Rosimeire Pinto Trindade, conselheira tutelar em Belo Horizonte.

[g1_quote author_name=”Maria Cláudia Falcão” author_description=”Coordenadora do Programa de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho do Escritório da OIT no Brasil ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Precisamos agir rápido. Antes já havia um ‘gap’ enorme entre os alunos da escola privada e os da pública, com a pandemia essa distância vai aumentar ainda mais

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Diante da explosão de casos que presencia nas comunidades onde atua, a conselheira teme que eles voltem para a escola – se retornarem – muito mais agitados, agressivos e desinteressados. “Hoje eles estão aí, na rua, soltos no mundo. Os pais viram como é difícil educar um filho em casa”. Há mais de 20 anos na área, Rosimeire acredita que um acolhimento bem feito com uma criança evita “um adulto problemático”.

De acordo com o Sistema de Informação para infância e Adolescência, os Conselhos Tutelares registraram 112 violações de trabalho infantil entre março de 2020 e março de 2021.

Aprendiz para poucos

Muitas famílias tiveram a renda impactada e a percepção de quem vai a campo é que não adianta apenas falar “não pode trabalhar”; há que se oferecer alternativas. “Eles podem, desde que seja na idade correta e em uma ocupação que lhes assegure dignidade”, explica Maria Cláudia Falcão, coordenadora do Programa de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho do Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil.

Quem teve a oportunidade de passar pela aprendizagem profissional, por exemplo, costuma ver a experiência como decisiva para vencer as limitações da própria condição social.

Em um país de dimensões continentais como o Brasil, com mais de 5 mil municípios, a OIT alerta sobre a necessidade de se garantir que essas políticas cheguem na ponta. A possibilidade de trabalho como menor aprendiz não é uma realidade na zona rural ou em cidades de pequeno porte, já que não há, nesses ambientes, quem gere essas vagas.

“O menino do campo tem os mesmos direitos daquele que mora na capital. Como fazer para igualar e dar as mesmas oportunidades aos dois? Por meio da municipalização da política pública”, argumenta Maria Cláudia, esclarecendo que o Brasil tem um amplo arcabouço legal, mas o desafio é fazer com que as prefeituras estejam fortalecidas para implementar as diretrizes previstas.

*Nomes fictícios para proteger as crianças

**Esta série de reportagens foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e do Itaú Social.  

Lição de Casa

Projeto de investigação jornalística (colaborativo e nacional) para acompanhar os impactos da covid-19 na educação brasileira. São 15 jornalistas em dez estados brasileiros. O site http://licaodecasa.org/ foi lançado em dia 15 de setembro de 2020, após seis meses de pandemia.

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