Entre 1996 e 2001, a série americana ”3rd Rock from the Sun” narrou as aventuras de quatro extraterrestres disfarçados na Terra como uma família. O nome em inglês se referia à posição do planeta na galáxia – “terceira pedra a partir do Sol”. Ou seja: estamos numa rocha (redonda, redonda!!!!) flutuando no espaço. Assim, a posição de continentes, oceanos, países, ilhas e polos será ao gosto do freguês, a partir da referência que se estabelecer. Certo?
Errado – para os ignorantes exuberantes (e barulhentos) que grassam desavergonhadamente pelas redes sociais.
Leu essa? A urgência da cartografia digital
O IBGE lançou essa semana, em evento do G20 no Rio, a 9ª edição do Atlas Geográfico Escolar com mapa-múndi no qual o Brasil e, claro, as Américas aparecem no centro. África e Europa ficam à direita; Ásia e Oceania nas pontas. Como a linha do Equador atravessa o extremo norte do nosso território, dá-se o destaque, bem no meio da representação.
Além de aumentar o protagonismo brasileiro, faz questionar conceitos de centro e periferia, impostos pelas formulações cartográficas tradicionais. Nome do jogo: colonização, no sentido mais amplo da palavra. Ao desenhar seus mapas, os europeus se aboletaram no alto e no meio, indicando a importância que, ao longo dos séculos, usaram a violência para conquistar. Uma espécie de aval ilustrado da sanha hegemônica. E durante décadas, as escolas do mundo seguiram as referências.
Mas veio o pensamento decolonial, para redesenhar a aventura humana e corrigir muita história errada. De inestimáveis serviços prestados à sociedade brasileira, o Instituto das estatísticas – do Censo, da Pnad e tantas outras – evocou o “Geográfico” que carrega em sua sigla, oferecendo contribuição preciosa aos brasileiros, para decifrar o mundo da maneira devida.
Mas, na lamentável era do bate-boca digital, deu ruim. O perfil do IBGE no Instagram recebeu uma torrente de comentários intolerantes, preconceituosos – e obtusos. “O Meridiano de Greenwich passa no Brasil agora que legal! Kk”, atacou o autodenominado Rodrigo Abi Saber, referindo-se equivocadamente à linha que cruza o Reino Unido e divide o planeta em leste e oeste (na perspectiva europeia). “Educação Paulo Freire. Idiotices a todo vapor”, berrou Zinalton Andrade. “Único (sic) coisa q vejo o Brasil como o centro do mundo seria a (sic) categorias corrupção, ignorância, analfabetismo”, gritou Caio Makalski.
Os conservadores digitais invocam o patriotismo como predicado (“Brasil acima de tudo”, “Nossa bandeira nunca será vermelha”, urram em suas aglomerações cada vez menores), mas são os primeiros a diminuir o país. Idolatram os Estados Unidos, migram para Portugal e, sobretudo, bradam o paradoxo de menosprezar a terra onde vivem. Como todo o resto, faz nenhum sentido.
Mas os cães podem ladrar que a caravana passa. Até o início da noite de quarta-feira (17), o post teve exatos 402 comentários e 12.655 curtidas – a maioria, ufa!, saudando o lançamento, para mostrar o acerto da iniciativa. O debate, aliás, tem a cara do nosso tempo: sequer faz sentido. Mapas são o que a gente quiser. Depende de onde se olha – e do que se pretende comunicar.
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Veja o que já enviamosA Fundação Lilian Thuram (jogador campeão do mundo com a França em 1998, hoje ativista antirracista), por exemplo, radicalizou. O mapa-múndi que adota aparece, para os olhos viciados na caretice colonizadora, de cabeça para baixo; a África, enorme, ocupa o centro; a Europa fica no canto inferior direito, totalmente coadjuvante; a América do Norte está ainda mais reduzida.
Criado em 1974 pelo alemão Arno Peters, convida a pensar o planeta a partir dos protagonistas que a história convencional invisibilizou. Afinal, se a humanidade nasceu na África, lá é o continente mais importante.
“Será trivial posicionar a Europa no topo e no centro? Esta representação está tão ancorada no nosso imaginário que quase acabamos por esquecer que, a Terra sendo uma esfera, podemos olhar para ela em qualquer direção: o topo pode virar o fundo, a direita pode virar a esquerda e vice-versa. Devemos educar nossos filhos para compreenderem que todas as coisas devem e podem ser encaradas de maneiras diferentes. Multipliquemos os nossos pontos de vista, porque ao adotar um único ponto de vista corremos o perigo de acreditar que só este é verdadeiro. A África está aqui no centro para nos lembrar de algo que muitas vezes esquecemos: os nossos antepassados nasceram lá há mais de três milhões de anos. Quer queiramos ou não, e seja qual for a cor da nossa pele, religião ou sexualidade, somos todos de origem africana”, sustenta Thuram, em texto da sua fundação.
Discorda, você aí? Tudo bem (desde que dentro da tolerância e da boa educação). Como ensina o ativista francês, tudo pode na cartografia e na circulação de pensamentos e opiniões. Convém evitar a ignorância – e este é o maior desafio.
As pessoas andam viciadas em dedicar tempo e energia a debates despropositados. Em 2023, a Disney – empenhada em limpar seu prontuário racista e sexista – lançou versão em live action de “A pequena sereia”, com a protagonista vivida pela atriz negra Halle Bailey. Quebrou a internet, com os preconceituosos furiosos diante da sereia preta, “só faltava essa”.
Circulou a hashtag #NotMyAriel (“Não é a minha Ariel”) e foram lançadas petições online contra a seleção do elenco, cheias, obviamente, de insultos racistas. Muitos fãs do filme original (de 1989) reclamavam ser impossível imaginar aquilo. Os racistas só esqueceram um fato da vida: SEREIAS NÃO EXISTEM! De qualquer cor.
Nem super-heróis – daí, igualmente não fazia sentido a gritaria em torno do anúncio, em 2021, de que a Warner pretendia produzir filme do Superman com um ator negro no papel. Lá foi a internet enfileirar quilômetros de chororô, de que o Homem de Aço, nascido no planeta Krypton, tinha de ser branco.
No fim de “3rd Rock from the Sun”, os alienígenas, depois de muito observar, desistem da Terra e dos humanos e vão-se embora. Fizeram bem.