Um carro cheio de entregas e três celulares com internet. Essas eram as únicas ferramentas de trabalho de Cristian Oliveira dos Santos, 24, e sua mãe, Luana Gomes de Oliveira, 42, moradores da Brasilândia, Zona Norte de São Paulo. Os dois faziam parte da rede de entregadores parceiros da empresa Loggi. A empresa se define como “uma companhia que organiza a entrega entre o cliente e o mensageiro”, e por essa razão, não tem nenhum vínculo trabalhista com seus entregadores que, como opção, oferece o regime MEI (Microempreendedor Individual) em seu cadastro.
Leu essa? Líder dos entregadores: negócio do aplicativo é explorar a força de trabalho
O uso diário de internet para conectar ao serviço e a rotina de até 9 horas de serviço, faziam que um celular conectado a internet móvel não fosse o suficiente: “Meu plano de internet era da Vivo, em torno de 20 GB, pré-pago, então (com o uso diário) consumia minha Internet muito rápido” dessa forma, um celular apenas não dava conta da necessidade mensal para uso do pacote de dados limitado: “como trabalhávamos eu e minha mãe, um dia eu usava o meu celular pessoal, daí, outro dia ela usava o dela, e quando acabava a internet dos dois, nós pegávamos o celular de uma irmã, que estava desempregada na época”, conta Cristian.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosClique aqui e siga o canal do Whatsapp do #Colabora
A pandemia forçou uma transformação acelerada no mercado de trabalho. Segundo os dados divulgados pela PNAD Contínua, no 4º trimestre de 2022, o Brasil tinha 1,5 milhão de pessoas trabalhando por meio de aplicativos. Esse número representava 1,7% da população ocupada no setor privado, que era de 87,2 milhões. Todos eles ligados por um ponto em comum: na relação de custo x benefício ao uso de pacote de dados, a quantidade mensal de internet é restrita e não dá conta do uso.
Segundo Cristian, não valia a pena contratar um plano de internet mais robusto: “o valor que eles pagavam por entrega era abaixo porque, além da internet, a gente tinha que separar o valor de gasolina, manutenção do carro, porque a gente usava o nosso carro”. O uso de celulares com internet de qualidade são imprescindíveis para serviços como o dele, e seu problema é comum entre os brasileiros entregadores de aplicativo, que precisam usar a internet para se conectar com os clientes, ler código de barras para finalizar entregas e receber instruções.
O estudo “O abismo digital no Brasil”, realizado pela empresa PwC Brasil em parceria com o Instituto Locomotiva, aponta que o país ainda enfrenta um grande desafio na inclusão digital. Segundo o estudo, apenas 20% da população brasileira tem acesso à internet de qualidade, representando uma diferença significativa entre as regiões, classes sociais e grupos etários. A pesquisa mostra ainda que o acesso à internet é mais desigual no Brasil do que em países desenvolvidos. Por exemplo, enquanto nos Estados Unidos 94% da população tem acesso à internet de qualidade, no Brasil esse número é de apenas 20%.
A desigualdade de acesso à internet de qualidade tem diversos fatores: deficiências da infraestrutura de conexão — que incluem problemas de amplitude, qualidade e distribuição do sinal; custos do acesso e dos equipamentos; limitações de acesso a hardware; e deficiências do sistema educacional.
O estudo aponta que o abismo digital no Brasil pode ter consequências graves para o futuro do país. A falta de acesso à internet pode limitar o desenvolvimento econômico e social do país, além de aumentar as desigualdades sociais. No mercado de trabalho, a falta de habilidades digitais pode dificultar a contratação de pessoas e a ascensão profissional. No âmbito educacional, o trabalho a falta de acesso à internet pode prejudicar o aprendizado dos alunos, especialmente aqueles que vivem em áreas rurais ou periféricas.
A qualidade na internet no ensino
Barbara Locatelli Barroco, 32, professora há 10 anos da rede privada, testemunhou como a pandemia de covid-19 e a necessidade de isolamento social evidenciaram a desigualdade no acesso a uma educação de qualidade. As aulas, que se tornaram inteiramente online, recebiam reclamações frequentes dos professores que perdiam os alunos durante as aulas. “São crianças até 10 anos; muitos ficavam sozinhos assistindo às aulas, então também tinham um pouco de dificuldade de perceber quando a internet caia, quando ela estava ruim, e como isso poderia ser resolvido”, conta Barbara.
A pandemia de covid-19 levou quase todas as escolas brasileiras a adotarem aulas online. No entanto, esse modelo de ensino não foi acessível a todos os estudantes. Segundo estudo do Comitê Gestor da Internet no Brasil, 47 milhões de pessoas no país não têm acesso à internet. Além disso, apenas 15% dos estados brasileiros que adotaram o ensino remoto distribuíram dispositivos aos alunos, e menos de 10% subsidiaram o acesso à internet. Como consequência, 3,7 milhões de estudantes matriculados não tiveram acesso a atividades escolares e não conseguiram estudar em casa. O número representa 11% do total de estudantes matriculados no Brasil.
A solução para driblar essa situação foi começar a gravar as aulas para serem assistidas em outro horário e oferecer flexibilidade na entrega de atividades. “Eu gravava as aulas no período da noite, editava e enviava na manhã aos alunos para que eles pudessem assistir no YouTube”, explica Barbara. E apesar do esforço dos professores, o desinteresse e a falta de interação que uma aula gravada poderiam oferecer trazia uma redução de aprendizado. A maioria dos alunos afetados pela falta de acesso à educação é de famílias de baixa renda, que vivem em áreas rurais ou periféricas. Esses alunos podem ter dificuldade de acompanhar o conteúdo escolar, perder o ano letivo ou até mesmo abandonar os estudos.
E essa interação com a internet só se intensificou após a pandemia, além dos alunos, os pais também tiveram que se alinhar tecnologicamente para estarem atentos a vida acadêmica dos seus filhos. Barbara conta que muitos contatos imediatos são atualmente feitos obrigatoriamente por aplicativos de agenda dos próprios colégios, mas nem sempre são efetivos. “Às vezes, a gente sobe algum recado, e os pais não recebem. Ou porque a internet do colégio não estava boa, porque tem muita gente usando ou porque deu algum problema na casa dos alunos.”
O Brasil ficou em 78º lugar em matemática e 63º em leitura no Pisa 2022, realizado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) com 79 países. Isso significa que os estudantes brasileiros têm um desempenho abaixo da média dos países participantes em ambas as áreas.
E a pandemia de COVID-19 agravou o quadro da educação no Brasil. Em 2021, 10 de cada 25 crianças brasileiras não sabiam ler e escrever, um aumento de 67% em relação a 2019. Além disso, estudo feito pela OCDE com base nos resultados do Pisa mostra que 67% dos estudantes de 15 anos no Brasil não conseguem diferenciar fatos de opiniões na leitura de textos. Esses resultados são preocupantes, ao indicarem que a educação brasileira está enfrentando desafios importantes.
Além disso, a falta de estrutura de informática e internet nas escolas também é um problema sério no Brasil. Segundo dados do Censo Escolar 2022, 9,5 mil escolas públicas brasileiras não têm acesso à internet. Em 30,4% das escolas públicas não têm laboratório de informática e 49,6% não têm computadores ou tablets suficientes para atender a todos os alunos, fora a questão da qualidade da internet. Essa falta de estrutura dificulta o uso de tecnologias digitais na educação, que podem oferecer pesquisas como ferramenta importante para melhorar o aprendizado dos alunos. Barbara conta que em uma das escolas que trabalhou não possuía sala de informática e as ferramentas oferecidas para pesquisa se tornavam ineficazes em uma sala de aula por conta do alto uso da internet: “Semanalmente, pelo menos uma vez por semana, em algum período, o colégio fica ou com a internet instável, ou sem a internet”.
O movimento #LiberaAMinhaNet
Um movimento organizado por consumidores, entidades da sociedade civil e pelas organizações Coalização Direitos na Rede, Data_Labe e pelo Instituto de Referência em Internet e Sociedade, está pedindo o fim da cobrança de franquia de internet fixa no Brasil. O movimento, chamado #liberaaminhanet, ganhou força nas redes sociais nos últimos meses. Os organizadores do movimento argumentam que a cobrança de franquia é um monopólio abusivo das operadoras de telecomunicações. Eles afirmam que a franquia limita o acesso à internet, prejudica a liberdade de expressão e o direito de informação.
O movimento também critica que a franquia é cobrada mesmo quando a internet não é utilizada. Eles afirmam que isso é uma forma de as operadoras de telecomunicações lucrarem com a ociosidade da rede. O movimento #liberaaminhanet ganhou força após a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A LGPD estabelece que as operadoras de telecomunicações devem informar os consumidores sobre o uso de seus dados pessoais. Os organizadores do movimento argumentam que essa informação deve incluir o uso da franquia.
O movimento #liberaaminhanet pede que o governo federal e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) tomem medidas para acabar com a cobrança de franquia de internet fixa. Eles também pedem que as operadoras de telecomunicações sejam obrigadas a informar os consumidores sobre o uso de seus dados pessoais. A Anatel ainda não se manifestou sobre o movimento #liberaaminhanet. No entanto, a agência já afirmou que está estudando a possibilidade de acabar com a cobrança de franquia de internet fixa.
As operadoras de telecomunicações defendem a cobrança de franquia de internet fixa. Elas argumentam que a franquia é necessária para garantir a qualidade do serviço. Eles afirmam que, sem a franquia, as operadoras teriam que investir mais em infraestrutura para atender a demanda de todos os usuários. As operadoras também afirmam que a franquia é uma forma de evitar o desperdício de recursos. Eles afirmam que, sem a franquia, os consumidores poderiam consumir mais internet do que precisam, o que poderia levar a congestionamento da rede.
A Lei Geral de Telecomunicações (Lei n.º 9.472/97) estabelece que as operadoras de telecomunicações podem cobrar pela franquia de internet fixa. No entanto, a lei também estabelece que a franquia deve ser “razoável”. A Anatel é responsável por regulamentar o uso da internet no Brasil. A agência pode estabelecer regras para a cobrança de franquia de internet fixa.
A internet como direito básico
A Constituição Federal, o Marco Civil da Internet e o Código de Defesa do Consumidor estabelecem que o acesso à internet é um direito fundamental do consumidor. Essas leis garantem que o acesso à internet seja livre, independente de censura ou controle editorial, e que não possa ser interrompido, salvo por ordem judicial.
- A Constituição de 1988, em seus artigos 170 e 174, estabelece que a ordem econômica brasileira deve se pautar no direito do consumidor e na redução das desigualdades.
- A Lei nº 12.965/14, conhecida como Marco Civil da Internet, estabelece que o acesso à internet é um serviço essencial.
- O artigo 7º da lei estabelece que o acesso à internet é um direito fundamental do cidadão. O artigo 7º, IV, da lei estabelece que o acesso à internet deve ser livre, independente de censura ou controle editorial. O artigo 9º, § 3º, da lei estabelece que o acesso à internet não pode ser interrompido, salvo por ordem judicial.
- A Lei nº 8.078/90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor, estabelece que o consumidor tem direito à disponibilidade de produtos e serviços essenciais. O artigo 22 do código estabelece que o consumidor tem direito à continuidade do fornecimento de produtos e serviços essenciais, quando fornecidos com habitualidade ou continuidade, e sem prejuízo do disposto na legislação pertinente.
- O Decreto nº 8.771/16, que regulamenta a Lei nº 12.965/14, estabelece hipóteses de quebra da neutralidade da rede. O artigo 5º do decreto estabelece que a Anatel pode autorizar a quebra da neutralidade da rede em casos de segurança nacional, requisição judicial ou interesse público.
Apesar de todos esses dispositivos jurídicos, ainda há, no entanto, muito a ser feito para garantir que a internet seja acessível a todos os brasileiros. A Anatel precisa monitorar o cumprimento das leis e tomar medidas para reduzir o custo da internet, especialmente nas áreas rurais e de baixa renda.
Além disso, é importante que a sociedade civil se mobilize para defender o acesso à internet como direito fundamental. Com todos a desempenhar um papel para garantir que a internet seja uma ferramenta acessível e inclusiva para todos os brasileiros.