‘Negócio do aplicativo de entregas não é o delivery, mas explorar a força de trabalho’

Paulo Lima, o Galo, líder do movimento dos entregadores, defende a CLT: “Ilusão é acreditar que se é empreendedor e que vai ficar rico”

Por Kelly Lima | ODS 10 • Publicada em 23 de julho de 2020 - 08:40 • Atualizada em 30 de julho de 2021 - 16:54

Paulo Lima, o Galo, quer “provar para vida que é possível vivê-la sem a pressa que o capitalismo impõe”. Foto Renato Maretti

Seu pseudônimo no Twitter é Galo de Luta, mas o paulistano Paulo Lima não está enraivecido, nem ávido pelo embate. Se diz disposto a “provar para vida que é possível vivê-la sem a pressa que o capitalismo impõe”. Uma das vozes mais representativas do Movimento dos Entregadores Antifascistas, que viralizou na internet em março de 2020 em vídeo de desabafo ao ter sido bloqueado injustamente por um aplicativo, e ter organizado a paralisação de milhares de entregadores no dia 1º de julho, Paulo Lima, 33 anos, o tal Galo, disse, em entrevista ao #Colabora, que estava apenas comemorando a vitória daquele dia: a alta que sua mãe acabara de receber do hospital depois de ter estado internada por covid-19. “A luta não é miojo”, compara em uma de suas frases de efeito. “Não se muda todo um sistema da noite pro dia, de uma hora pra outra. Vamos dar um passo de cada vez”.

E quando ele diz mudar, é tentar transformar todo um sistema empregatício que vem se transformando nos últimos anos, com mais e mais pessoas fora do mercado de trabalho formal, ora deixando a CLT para assumir contratos de MEI (Micro Empreendedor Individual), ora apenas aceitando os “bicos”, que agora se transformaram nos contratos temporários com os aplicativos de entregas – especialmente de comida. Se por um lado os aplicativos viraram os chamados “unicórnios” – startups criadas a partir do Vale do Silício, ou mesmo no Brasil – que alavancaram mais de US$1 bilhão no mercado – por outro são consideradas responsáveis por monopolizar o mercado outrora de motoboys e trazer a tal precarização ou uberização desses serviços.

Aumento do valor do tíquete médio nas entregas, ausência de seguro para que possam ter renda se sofrerem um acidente ou tiverem a moto roubada, ou mesmo caírem de cama por causa da covid-19, e ter acesso a benefícios como, por exemplo, um prato de comida na longa jornada de trabalho, que às vezes perdura por mais de 14 horas diárias. Essas são as principais reivindicações do contingente de mais de 900 mil motoqueiros e ciclistas que fazem entregas em todo o país e planejam nova parada no dia 25 de julho. Conhecido como Entregadores Antifascistas, esse grupo reúne quase dois terços do total e quer mais: a volta da CLT.

Nas ruas, com outros entregadores, Paulo Lima diz que tem vivido de contratos temporários de motoboy. Foto Renato Maretti
Nas ruas, com outros entregadores, Paulo Lima, o Galo, diz que tem vivido de contratos temporários de motoboy. Foto Renato Maretti

Galo sabe o que fala. Neto de caminhoneiro aposentado com CLT, viu os pais trabalhando como terceirizados antes de se tornarem microempreendedores de fato e montarem uma floricultura. “A terceirização já era o princípio da uberização, mas numa época em que ainda dava para escapar e tentar seu negócio. Hoje não dá”, sentencia. Ele próprio já havia sido contratado pela CLT como técnico de telecomunicações, depois pintor, depois motoboy, quando teve dois acidentes e decidiu largar esse tipo de serviço pelos riscos. Tentou montar uma floricultura como os pais, mas quando a filha (Aisha Sofia – que ele traduz como Vida e Sabedoria) nasceu, a responsabilidade de por comida na mesa aumentou e ele desistiu do negócio e tentou voltar para a vida de motoboy, com contratos, horário certo de trabalho e benefícios como antes. “O mundo em três anos tinha mudado todo e os aplicativos sanguessugas tinham monopolizado este mercado, embasado na precarização”.

Mesmo aos incrédulos sobre uma conquista deste porte de reverter a ordem nacional e buscar a volta da CLT, Galo garante que “ilusão é acreditar que se é empreendedor e que vai ficar rico. Não vai”. “O modelo de negócios de um aplicativo de entregas não é o delivery, mas a exploração da força de trabalho”.

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A CLT é uma conquista dos trabalhadores. Não deve ser abandonada. Hoje, há esse movimento por aí, que o Bolsonaro encampou, que é de “mais empregos e menos direitos”, como se isso fosse acabar com o desemprego. Os empregadores tentam iludir, primeiro destruindo sua autoestima, cortando os empregos, depois dizendo para você que você pode ser igual a eles. Não pode

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Seu discurso parece forjado na academia e em longo estudo da literatura mundial de esquerda, mas ele diz que lê pouco por falta de tempo e de acesso. “Mas lê clássicos de luta”. Aos 10 anos, cansado de “levar tapas na cabeça”, e decidido a conquistar o mesmo respeito que os bandidos da vizinhança pareciam ter, decidiu se enveredar pelo mundo do hip hop. Queria ser forte e ter o mesmo poder daqueles que ousavam desafiar a polícia em suas letras de revolta. Perguntou como poderia se tornar um deles, e recebeu livros: “Leia muito. Leia sempre”, disseram.

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Conheceu aí Malcom X, Martin Luther King, Maquiavel, entre tantos outros, mesmo tendo parado de estudar na oitava série e concluído os dois primeiros anos do ensino médio apenas anos depois, aos 27. Da combinação entre essas leituras e a destreza para improvisar e encadear letras de protesto do hip hop saiu a clareza de pensamentos que tem lhe trazido convites para lives, entrevistas e candidaturas. Da esquerda, do centro e até da direita. Mas nega que vá se enveredar por eleições e candidaturas: “Sou um político de rua”.

Enquanto prepara o próximo movimento e busca formas de financiar um aplicativo mais justo, voltado para os trabalhadores, Galo busca leituras que o inspirem. Deve começar o clássico Crime e castigo, de Dostoiévski, em breve, enviado pela entrevistadora, que se sensibilizou com sua vontade expressa de ler o clássico, a falta de acesso, e o autodidatismo nato que exibe no discurso claro e objetivo, recheado de citações e metáforas sagazes.

Abaixo, os principais destaques da entrevista.

#Colabora – Galo, muito tem saído sobre você na mídia, desde que os protestos dos entregadores começaram, e especialmente depois da greve de 1º de julho. Como isso afetou sua vida?

Paulo Lima, o Galo. Primeiro os aplicativos me bloquearam. Eu tenho vivido de contratos temporários de motoboy, mas isso acabou com a minha renda. Há um fundo criado lá no início do movimento, em que recebemos doações de pessoas que se solidarizaram com a causa desde que o meu vídeo viralizou quando tive um bloqueio injusto por causa do aplicativo, que também ajuda. Mas não acho justo falar no coletivo e receber no individual. Então esse fundo é coletivo. Outro dia um companheiro teve roubada a bicicleta que usava do aplicativo do Itaú e sua conta foi suspensa. Então, usamos recurso do fundo para comprar uma bicicleta pra ele. Só de ver a alegria dele com esse ato, já valeu todo o movimento. Se tudo acabasse agora teria valido a pena por causa dessa ação. A gente vive um dia de cada vez e comemora cada conquista.

 #Colabora – O que te leva a ter tamanha determinação para garantir a carteira de trabalho dos entregadores, mesmo muitos dizendo que é uma luta inglória, que a conta não fecha?

A CLT é uma conquista dos trabalhadores ao longo da história. Não deve ser abandonada, porque isso é como jogar por terra tudo o que muita gente lutou para conseguir no passado. Hoje, há esse movimento por aí, que o Bolsonaro encampou, que é de “mais empregos e menos direitos”, como se isso fosse acabar com o desemprego. Tem muita gente iludida de que isso só serve para entregador, ou que vai virar empreendedor nesse novo tipo de contrato. Os empregadores tentam iludir, primeiro destruindo sua autoestima, cortando os empregos, depois dizendo para você que você pode ser igual a eles. Não pode. Ninguém vai ficar rico e só eles vão ganhar. A conta não fecha para o aplicativo porque o negócio deles não é delivery. É exploração da força de trabalho.

E essa forma de contrato vai se espalhar logo para além dos aplicativos. Qual dono de frota não vai querer isso? Daqui a pouco chega até nos Correios. Meu pai tem assistido às minhas lives e outro dia fez uma boa comparação, tentando entender meu discurso. Contou que, em 1980, ele viu um anúncio no jornal que oferecia emprego a quem vendesse 20 filtros de água em 48 horas. Ele não chegou nem na metade da meta. E aí descobriu que outros 20 iguais a eles também haviam concorrido à vaga. Trabalharam dois dias de graça e só a empresa lucrou. Aí ele me disse: “Isso já era a uberização, antes mesmo do aplicativo chegar”. É a relação de trabalho em que só um lado ganha e o outro fica no sonho, na ilusão.

#Colabora – Nem todos os entregadores têm a mesma pauta em prol da CLT. Como vocês lidam com isso no movimento?

Alguns até me dizem “como pode um movimento antifascista querer adotar a CLT, que foi criada pelo fascista do Getúlio Vargas?”. Outros me mandam para Cuba. Mas muitos estão entendendo o que eu estou tentando dizer. Não é uma canetada do Getúlio que criou a CLT, mas sim toda a luta que veio antes dele, de milhares de trabalhadores. Meu discurso não é comunista ou socialista. Eu nem li O Capital, ou o Manifesto Comunista, mas sei que essa é uma garantia adquirida do trabalhador e que não podemos abrir mão. Um modelo misto talvez seja mais adequado, com os aplicativos, os donos dos negócios contratando uma parte com CLT e deixando a outra livre para servir a vários.

#Colabora – Neste caso, há muitos entregadores que não se importam em ser MEI (Micro Empreendedor Individual). Essa figura de contrato de trabalho não dá garantias suficientes? Não seria o caso de melhorar essa relação de trabalho em vez de investir na conquista da CLT?

MEI é uma armadilha. Tenta te seduzir, mas não oferece garantias suficientes. É melhor que nada. E tem alguns aplicativos que já exigem isso. Mas está longe de ser o ideal. É uma ilusão porque vende a ideia de que você é um empreendedor como o cara que fez o aplicativo e ficou bilionário. É uma ilusão acreditar que se é empreendedor e que vai ficar rico trabalhando mais de 12 horas por dia, tirando menos de R$ 1,00 apenas pelo quilômetro rodado entre o local do pedido e o da entrega, e ainda tendo que pagar o combustível, a prestação da moto e a própria comida.

#Colabora – Há diferenças entre os aplicativos? Existe um que seja melhor ou pior do que outro no modelo de trabalho?

Se você perguntasse a um escravo qual fazenda era melhor, ele certamente iria te responder Palmares. As outras eram todas iguais. O mesmo acontece com os aplicativos.

#Colabora – Esse sistema terceirizado e de contratos de trabalho são vistos por muitos como o futuro do trabalho, meio que um caminho sem volta, com as pessoas trabalhando para várias fontes ao mesmo tempo, mais horas do dia, e às vezes ganhando menos. Realmente não parece ser um modelo sustentável, condizente com um desenvolvimento sustentável.

O desenvolvimento não tem como ser sustentável se só pensa em crescimento econômico de uns e aumenta a desigualdade. O capitalismo acelerou o nosso tempo. Hoje, nosso filho cresce mais rápido, nosso cabelo fica branco mais rápido, nossa coluna dói mais cedo. O ser humano se perdeu quando tirou os pés do chão. Saiu da terra e começou a se perder no mundo. Muito asfalto, muito plástico. A gente deixou de evoluir no ritmo da natureza e passou a evoluir no ritmo do capitalismo.

Desde a época da Revolução Industrial que a gente se perdeu. As máquinas vieram para ajudar a força de trabalho e não para substituí-la. Pelo menos era assim que deveria ter sido. Por que as pessoas precisam de aplicativo para comprar sua comida? Tudo podia ser entregue pelo próprio restaurante com um entregador de bicicleta. Não teria tanta fumaça e daria o emprego para cada um se mantendo num círculo menor de trajeto correndo menos risco. Ganhando a vida decentemente sem viver essa loucura. Eu estou num momento em que quero convencer essa vida de que sou capaz de viver ela, de que nós estamos acima de tudo isso que está acontecendo e que é possível recuperar o que perdemos.

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Eu já sou político. Sou político de rua e não tenho a menor pretensão de ser político institucional

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#Colabora – Você tem uma clareza de argumentação e é visto como um líder, como isso surgiu?

Eu não gosto de ser chamado de líder, mas sei que sou uma pessoa que contribui para dar força ao movimento. Desde pequeno eu queria ser rapper. Eu vi os bandidos do bairro, que eram do hip hop, sendo respeitados, tendo poder e, aos 10 anos, eu queria parar de levar tapas na cabeça e ser também respeitado, ter poder. A gente sabe que a kriptonita dos bandidos é a política. E aqueles caras xingavam a polícia nas músicas. Aí eu pensava: se esses caras xingam a polícia, então, eles são muito poderosos.

Então, achava que o caminho do hip hop poderia me levar a isso. Perguntei um dia para eles como eu poderia ser um rapper e recebi a dica valiosa: “Leia. Leia muito e leia sempre”. Ganhei de um parceiro Negras raízes (Alex Haley), e depois outro do Malcom X, e a cada um eu tinha que escrever uma letra. Depois veio As veias abertas da América Latina (Eduardo Galeano), Revolução dos bichos e 1984 (George Orwell), Admirável mundo novo (Aldous Huxley), conheci os escritos de Maquiavel, Martin Luther King, Mahatma Gandhi e fui sempre buscando mais. Minha escola política foi o hip hop.

#Colabora – Mas mesmo negando ser um líder, você tem aparecido na mídia direto, sua argumentação é muito bem embasada e você tem despertado comparações com o ex-presidente Lula, na sua época sindical. Ele é uma inspiração?

O Lula é sim um cara que admiro por tudo o que ele fez. Não é porque ele fez coisa errada que vou deixar de admirar pelas coisas boas que ele fez. Não se joga a história no lixo. Ele errou, quando deixou de se preocupar com a pessoas e passou a se preocupar em vencer. É para tirar uma lição daí e não repetir o erro. O Martin Luther King errou em trair a mulher, mas vai ignorar tudo o que ele fez por causa de um erro? Todos estamos sujeitos a erros e temos que ir aprendendo com os erros dos outros para diminuir os nossos. Não que a gente não vá errar, mas vai diminuindo as chances de pelo menos repetir o dos outros.

#Colabora – Você deve ter recebido vários convites para ser candidato…especialmente da esquerda, porque seu discurso está mais alinhado. Você não pensa em seguir carreira política, já aprendendo com esses erros para não repetir?

Eu já sou político. Sou político de rua e não tenho a menor pretensão de ser político institucional.

#Colabora – Um vereador deveria ser considerado um político de rua, não?

No fundo todo político deveria ser um político de rua, mas eu não tenho vocação para ser institucional. Se eu tivesse queria ser como o (José) Mujica (ex-presidente do Uruguai).

#Colabora – Por quê?

Nunca li nenhum livro sobre ele, mas queria ter aquela sabedoria sendo simples, tendo seu fusca, sua casinha. Mujica é uma grande uma inspiração. Ele e Paulo Freire.

#Colabora – Como você pretende levar agora os próximos passos do movimento?

A gente sabe que a luta não é miojo. Não se muda todo um sistema da noite pro dia, de uma hora para outra. Vamos dar um passo de cada vez. Não vamos fazer as mudanças no ritmo que o capitalismo dita. Não é porque eu quero que a minha filha estude na Sorbonne ou em Harvard, que eu não vou comemorar o primeiro dente, o primeiro passo. Cada vitória conta muito. E vamos parar dia 25 de julho novamente, abrir novos espaços de convencimento de novos companheiros a se engajarem. Um dia de cada vez. Comemorando uma vitória por dia.

Kelly Lima

Kelly Lima é paulista, mas há 14 anos no Rio já se considera um pouco carioca. Formada em jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), especializou-se em economia, atuando na cobertura da área de energia por mais de uma década na Agência Estado. Mais recentemente, trabalhou na área de desenvolvimento econômico e social do BNDES e do Governo do Estado do Rio. É sócia da Alter Comunicação, que produz conteúdo informativo para instituições e empresas, entre elas o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds).

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