Imagino que já tenha relatado em algum outro momento que só fui ter um professor negro no mestrado, e assim mesmo porque optei em realizar uma disciplina em outra instituição, especificamente com este professor, que atualmente é meu orientador de doutorado. Ou seja, levou 26 anos de educação formal para que eu tivesse um educador minimamente parecido comigo e só aconteceu porque forcei esse evento. Sim, foi um evento ter aula com um professor negro, que só aconteceu na pós-graduação.
Leu essa? Especial sobre os 10 anos da Lei de Cotas na Educação
De certa forma, entrar em sala de aula e encontrar uma pessoa parecida comigo transmitindo ensinamentos foi meu sonho de menina por muitos anos depois que deixei de ser criança. Mais tarde, já pesquisadora e interessada por temas relacionados a negritude, entendi que esse desejo era uma vontade genuína e desesperada por acolhimento, que as escolas particulares por onde passei quase sempre não estavam aptas a fornecer. A inexistência de professores negros e negras na minha trajetória escolar certamente teve impacto no meu desempenho. Não sem razão eu ainda lembro das muitas vezes que quis deixar de ir para escola porque o espaço escolar era um lugar violento para mim.
Apesar do ambiente escolar e das oportunidades terem mudado significativamente desde que venci essa fase, persistem disparidades raciais. Estudo recente do Insper, divulgado pela Folha, traz dados a serem observados com preocupação: as desvantagens educacionais entre crianças negras e brancas são profundas. Um dos mais preocupantes foi o referente à distância educacional em matemática das meninas pretas. O resultado indicou diferença de 30,2 pontos para os meninos brancos.
Acho que os dados sobre matemática me chamaram mais atenção e me chocaram mais ainda porque era justamente a matéria em que tinha mais dificuldade. Problema jamais resolvido e que me levou a evadir da faculdade de Agronomia, primeiro curso que tentei.
Acompanhe seu colunista favorito direto no seu e-mail.
Veja o que já enviamosE foi numa aula de matemática que pela primeira vez fui chamada de burra, por uma professora branca, de cabelos lisos e louros, cujas faces chegavam a ficar rubras mesmo na ausência de sol. Estava na quinta série e depois de muito tentar solucionar uma equação impossível – minha cabeça se preocupava muito mais com livros e letras do que com operações matemáticas e números – chamei a professora para me auxiliar. Ela respondeu que o problema não era a equação e sim que eu era burra. Ser ofendida assim, ainda tão criança, por uma pessoa que em tese deveria estimular e auxiliar meus processos de aprendizado, gerou um abismo com os números que jamais foi superado.
Conto isso aqui para que seja possível entender que o problema do racismo na educação é de ordem global. Não muda muito se a escola é pública ou particular, e demanda ações estratégicas mais complexas do que os recursos desenvolvidos para lidar com isso até aqui. Reduzir as desigualdades escolares é facilitar a mobilidade socioeconômica e talvez seja por isso, num país tão racista quanto o nosso, que elas persistem.
Além disso, essas disparidades educacionais, somadas à pouca presença de professores negros nas salas de aula e com as práticas racistas que seguem acontecendo no cotidiano escolar, inviabilizam sonhos de estudantes negros, que muitas vezes abandonam o sistema escolar em razão do racismo. E na equação devem ser considerados os professores – tanto na presença de mestres negros nas vidas de alunos negros, como na adoção de práticas antiracistas no desenvolvimento da educação de todos.
Talvez minhas aspirações fossem outras, se tivesse tido professores negros no ensino básico. Talvez se as meninas negras tivessem mais professores negros, as dificuldade com matemática não fosse tão profunda. É preciso diversificar o corpo docente desde o ensino básico e estimular estudos que possam avaliar o impacto da presença de professores negros na trajetória educacional de crianças negras. Não é mais possível ignorar que as disparidades raciais na educação também são fatores de profundo sofrimento para elas.
Os obstáculos ainda são espinhosos e as barreiras seguem sendo elevadas. Sonhar com uma sala de aula onde cada criança possa ser acolhida na sua diversidade e compreendida nas suas especificidades não é mero capricho. É a possibilidade de ter um país muito melhor.