Um país de desdentados

Jovem de comunidade carente é atendido por dentista voluntário do projeto Turma do Bem

No Dia Mundial do Sorriso, Brasil exibe dados alarmantes de descaso com a saúde bucal

Por Liana Melo | ODS 3 • Publicada em 29 de abril de 2016 - 10:14 • Atualizada em 29 de abril de 2016 - 16:27

Jovem de comunidade carente é atendido por dentista voluntário do projeto Turma do Bem
Jovem de comunidade carente é atendido por dentista voluntário do projeto Turma do Bem
Jovem de comunidade carente é atendido por dentista voluntário do projeto “Dentista do Bem”

Os indicadores melhoraram, mas o Brasil continua sendo um país de desdentados. Chega a 11% o percentual da população que não tem um único dente na boca. São, lamentavelmente, 16 milhões de brasileiros. Entre aqueles sem nenhuma instrução ou sem ensino fundamental concluído, o índice é ainda maior: sobe para 22,8%, segundo o censo mais recente sobre saúde bucal, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), do IBGE, com dados referente a 2013. Ao criar o Dia Mundial do Sorriso, há pouco mais de cinco décadas, o artista gráfico americano Harvey Ball não imaginava que a data causaria desconforto em pleno século XXI para aqueles que não ostentam dentes brancos e alinhados como os exibidos na publicidade, o famoso sorriso perfeito.

É para acabar com este constrangimento e devolver sorrisos saudáveis que a Turma do Bem – uma entidade do terceiro setor que atua na área de saúde bucal – elegeu o Dia Mundial do Sorriso, 28 de Abril, como uma data emblemática. Um total de 300 cidades brasileiras aderiram ao programa “Dentista do Bem”, organizado pela instituição. Foram montados consultórios a céu aberto para selecionar jovens carentes, de 11 a 17 anos, para receberem tratamento odontológico gratuito. Os mais pobres, os com as piores condições de saúde bucal e os mais velhos, que estão mais próximo do primeiro emprego, têm prioridade.

Triagem do “Dentista do Bem” no Circo Voador, na Lapa

No Rio, a maratona ocorreu no Circo Voador, na Lapa, no centro da cidade. Após a megatriagem, é elaborado um dossiê de cada criança e adolescente. Só depois desta primeira avaliação que o paciente é encaminhado para um dos consultórios odontológicos dos dentistas voluntários. As escolhas costumam recair sobre os endereços mais próximos à moradia do beneficiário. O tratamento é gratuito e incluí serviço completo: radiografias, ortodontia, próteses e implantes. A megatriagem é feita pontualmente, mas, durante todo o ano, os voluntários do “Dentista do Bem” vão às escolas públicas divulgar o serviço e abrir vaga para novos beneficiários.

Ruan Machado e a voluntária do “Dentista do Bem”, Waleska Trinkenreich

Faltam cinco meses para Ruan Felipe Machado completar a maioridade. Seu sonho é ser artista, mas enquanto não sobra dinheiro para fazer um curso de teatro, ele não descarta a possibilidade de, ao alistar-se, servir na Brigada de Infantaria Paraquedista. Depois dos 18 anos, ele não poderá mais usufruir dos serviços prestados pelo “Dentista do Bem” e Ruan tem urgência. Ao passar pela triagem programada para o “Dia Mundial do Sorriso”, o jovem, morador do Complexo da Maré, foi considerado beneficiário prioritário. Motivos: dois molares quebrados – ambos precisando urgentemente de tratamento de canal -, dores recorrentes, renda familiar de um salário mínimo e em idade de procurar emprego. Os dentes estão quebrados há mais de um ano e, na atual situação, ele não será aprovado no exame médico do Exército.

“Sabemos que um candidato a emprego com sinais visíveis de deterioração dentária tem menos chances de arrumar um emprego”, explica Ricardo Correa, superintendente da Turma do Bem, baseando sua argumentação em pesquisas acadêmicas, como a do King´s College, de Londres, que, ao estudar um grupo de 100 voluntários, constatou que entre os com dentes cariados ou manchados a chance de empregabilidade diminuía. “Um adolescente que não tem possibilidade de ir ao dentista e de cuidar da boca, será um adulto infeliz. Isto porque quem sente dor, não estuda, não brinca, não consegue um bom emprego, não beija na boca e se afasta dos amigos”.

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Um adolescente que não tem possibilidade de ir ao dentista e de cuidar da boca, será um adulto infeliz. Isto porque quem sente dor, não estuda, não brinca, não consegue um bom emprego, não beija na boca e se afasta dos amigos

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A dentista Waleska Trinkereich, que entrou na organização em 2009 e, desde 2014, virou coordenadora do “Dentista do Bem” no Rio de Janeiro, atende, atualmente, oito pacientes. Foi ela quem avaliou a saúde bucal de Ruan, mas, como seu consultório é na Tijuca, já avisou ao rapaz que ele será atendido por um profissional que tenha consultório mais perto da sua casa. “Temos que correr para atendê-lo, porque em alguns meses ele não poderá mais ser beneficiário”, antecipa Waleska. Dentro de, no máximo, um mês, ele receberá em casa uma carta com o endereço de um dos 690 dentistas voluntários filiados ao programa no Rio. O número de beneficiários cariocas é de 3.685 pacientes, entre crianças e jovens.

Criada em 2002, a “Turma do Bem” nasceu de uma experiência pessoal vivida pelo cirurgião-dentista Fábio Bibancos. Autor de livros como “Um Sorriso Feliz para Seu Filho”, “A Guerra dos Mutans, Boca!” e “Sorrisos do Brasil”, ele costumava ser convidado a dar palestras para pais e filhos em escolas privadas de São Paulo. No dia em que trocou de público e passou a falar para pessoas carentes levou um susto. Descobriu que não era apenas ignorância que fazia mal à saúde bucal. O maior problema era mesmo a falta de dinheiro. Famílias inteiras chegam a dividir a mesma escova de dentes por absoluta falta de condições financeiras de comprar o acessório. Ao tomar conhecimento desta realidade, Bibancos decidiu abrir a ONG. Quatorze anos depois de atender o primeiro paciente, a entidade se espalhou por 14 países.  A Turma do Bem está presente em 300 cidades brasileiras, dez países da América Latina e  Portugal. São cerca de 60 mil jovens atendidos por um conjunto de 16 mil dentistas voluntários.

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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