Transplante, o último recurso contra a Hepatite C

Cirurgia garante sobrevida aos pacientes que ainda sonham com a cura

Por Erin Stone | ODS 3 • Publicada em 10 de junho de 2016 - 11:09 • Atualizada em 10 de junho de 2016 - 14:57

Embora a cirrose de Jorge tenha sido provocada pelo álcool, o dano ao fígado causado pela Hepatite C é o mesmo. O vírus invade o sangue e, aos poucos, vai substituindo as células hepáticas até o fígado se tornar cirrótico
Embora a doença de Jorge tenha sido provocada pelo álcool, o dano causado pela Hepatite C é o mesmo. O vírus, aos poucos, substitui as células hepáticas até o fígado se tornar cirrótico
Embora a doença de Jorge tenha sido provocada pelo álcool, o dano causado pela Hepatite C é o mesmo. O vírus, aos poucos, substitui as células hepáticas até o fígado se tornar cirrótico

(Fotos de Ariel Subira) – Às 8h da manhã Jorge Martins de Aguilar é acordado em sua casa, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, por um telefonema a respeito de um fígado. O órgão com o qual nasceu está morrendo, atacado pela cirrose. Mas hoje um fígado compatível está disponível.

Ao mesmo tempo, a quase 50 quilômetros de distância, na Tijuca, Zona Norte do Rio, dois cirurgiões se preparam para trabalhar em um homem que teve morte cerebral decretada e cujo corpo abriga um fígado funcional. Este é o primeiro passo de um processo que dura em média 16 horas de preparação para uma cirurgia de transplante.

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O cheiro fica cada vez mais forte, misturado a um odor de borracha queimada e formaldeído. Logo eles retiram o fígado num movimento rotatório. Um som de ar escapando pode ser ouvido. O fígado doente vai para um recipiente de metal. Os batimentos cardíacos de Jorge se aceleram e dá para ver o órgão pulsando contra o seu diafragma.

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Por volta das 11 da manhã, o novo fígado de Jorge chega ao Hospital São Francisco de Assis e o cirurgião o examina para ter certeza de que, de fato, é compatível com o seu paciente. Fora do Centro Cirúrgico, três cirurgiões e dois anestesistas, todos homens jovens, brincam e conversam, aproveitando o ar fresco antes de terem de entrar e se preparar para o transplante de Jorge – uma cirurgia que pode durar de oito a dez horas. Isso, para eles, é rotina. Normalmente, eles fazem de 2 a 3 transplantes de fígado por semana.

Do outro lado do pátio, num outro prédio, Jorge aguarda, respondendo perguntas de uma enfermeira. Ele fala depressa, parece estar com vergonha e também um pouco nervoso, embora mantenha um sorriso amigável no rosto. A voz é alta e, às vezes, sai de uma forma meio sibilada por conta do espaço entre seus dois dentes da frente. Jorge é um sujeito pequeno, com a face e os membros magros, que não combinam com o tamanho excessivo de sua barriga, realçada ainda mais pelo uniforme de paciente muito justo.

A Hepatite C não pode ser curada por meio de um transplante de fígado, uma vez que o vírus continua no organismo e, pode, inclusive, atacar o fígado novo, mas o paciente ganha mais tempo. (Agora, com o novo medicamento, pacientes transplantados estão recebendo os remédios justamente para não terem os novos fígados atacados.)

A cirurgia é cansativa, envolve vários profissionais e pode durar entre oito e dez horas

A cirrose de Jorge, na verdade, é resultado de uma outra doença – o alcoolismo – o que o diferencia da grande maioria dos transplantados no Brasil, cujos fígados foram destruídos pela Hepatite C.

Finalmente, Jorge é colocado sobre uma maca. Os funcionários o transportam para o Centro Cirúrgico. Já são 16h. A essa hora, a luz que vaza pelos corredores assumiu tons dourados e ilumina as partículas em suspensão no ar, por onde Jorge passa. O barulho das rodas da máquina e os passos suaves dos auxiliares de enfermagem ecoam pelo corredor. Depois de passarem por uma imagem de Cristo crucificado, eles chegam a uma grossa porta de metal aberta por duas enfermeiras de uniforme cirúrgico. Jorge está olhando para o teto e não faz contato visual com ninguém. As portas se fecham atrás dele.

Uma hora depois, Jorge está anestesiado e apenas a protuberância do seu abdômen distendido pode ser vista sob o lençol azul. Na sala ao lado, dois médicos preparam o fígado saudável, que parece tenro e apresenta uma coloração vermelho acinzentada. O silêncio da sala só é rompido pelo barulho dos equipamentos e a conversa dos médicos. O cheiro não é forte; lembra um pouco o de borracha ou de algum produto químico, mas não é nada tão pungente quanto seria de se imaginar o cheiro de um fígado.

Na outra sala, enquanto Jorge dorme, o cirurgião-chefe, Reinaldo Fernandes, já começou a cortar a pele de sua barriga com laser. Um dos cirurgiões separa a pele, enquanto Reinaldo continua seu trabalho. São sete profissionais ao redor de Jorge: dois anestesistas, três cirurgiões e duas enfermeiras. Todos conversam entre si, enquanto Reinaldo continua abrindo a pele de Jorge.

As mãos da enfermeira assistente se movem com rapidez e constância, oferecendo os instrumentos aos cirurgiões sem que eles tenham sequer que olhar para ela

Uma enfermeira passa instrumentos aos cirurgiões e os anestesistas ajustam os níveis de anestésicos e proteínas ministrados ao paciente. Para um observador externo, é difícil acreditar que é um ser humano vivo que está ali, sendo queimado pelo laser e, literalmente, fatiado.

Um dos cirurgiões, faz a sucção de fluídos da barriga com a ajuda de uma cânula. Para quem não está acostumado, o laser queimando e a sucção do fluido ao mesmo tempo podem causar náusea. A cena toda é bastante violenta. Ao todo, onze litros de fluido são retirados da barriga de Jorge. O volume médio normal é de sete litros.

Eles afastam completamente a pele de Jorge, mantendo seu abdômen aberto. O buraco que se abre revela, através do diafragma, seu coração batendo. Reinaldo e os outros cirurgiões mantêm os olhos fixos no campo cirúrgico. As mãos da enfermeira assistente se movem com rapidez e constância, oferecendo os instrumentos aos cirurgiões sem que eles tenham sequer que olhar para ela. Os três agora estão silenciosos à medida que se aprofundam no corpo de Jorge, se movimentando no mesmo ritmo da respiração do paciente.

Jorge tem 51 anos de idade e o seu doador tinha 40 anos no momento da morte – as únicas informações que os cirurgiões recebem sobre o doador é sua idade, seu gênero e que ele teve morte cerebral declarada um dia antes por conta de um traumatismo craniano.

Depois de um tempo, o fígado de Jorge é finalmente revelado. O órgão tem uma aparência pouco saudável: uma coloração escura e uma aparência bem enrugada. A cirrose substituiu o tecido saudável do fígado por cicatrizes. As células do fígado não conseguem mais exercer sua função, que é levar a bile do fígado até o intestino, onde é descartada.

Para quem não está acostumado, o laser queimando a pele e a sucção do fluido ao mesmo tempo podem causar náuseas

Embora a cirrose de Jorge seja causada por uso abusivo de álcool, o dano ao fígado causado pela Hepatite C é o mesmo. O vírus invade a corrente sanguínea e, aos poucos, vai substituindo as células hepáticas até o fígado se tornar cirrótico. Este processo ocorre silenciosamente, ao longo de décadas, e essa é a razão por que muitos pacientes de Hepatite C não sabem que têm a doença até que a cirrose se manifeste.

A cirrose impede o fluxo de sangue pelo fígado, forçando as células hepáticas a buscarem outros caminhos, desbloqueados. Com o passar dos anos, o fígado cirrótico para de funcionar completamente, o que o impede de cumprir suas funções essenciais, como processar proteínas, açúcares e gorduras, que permitem o bom funcionamento do sistema imunológico, a digestão de alimentos e a eliminação de resíduos. Sem um transplante de fígado, o órgão morto leva ao colapso do restante do organismo, matando o paciente.

Na sala ao lado, o novo fígado está pronto. Os médicos o colocam numa embalagem especial, cheia de gelo, e o transportam pelo corredor até a sala em que o fígado doente de Jorge permanece em seu corpo.

Um pouco depois das 19h, o Dr. Lucio Pacheco entra na sala de cirurgia. Ele é o cirurgião-chefe da unidade de transplante e comanda uma equipe de 30 pessoas. “Boa noite, boa noite”, ele cumprimenta todos, chamando cada um pelo nome. Três cirurgiões que cercam Jorge abrem espaço para o Dr. Lucio. Está quase na hora de fazer a troca do fígado doente pelo saudável.

Um cheiro azedo toma conta do ambiente, quando os cirurgiões enfiam suas mãos no corpo de Jorge retirando o fígado doente, enquanto queimam as bordas do órgão com laser. As principais veias e artérias estão grampeadas, impedindo o fluxo de sangue para o órgão doente.

O cheiro fica cada vez mais forte, misturado a um odor de borracha queimada e formaldeído. Logo eles retiram o fígado num movimento rotatório. Um som de ar escapando pode ser ouvido. O fígado doente vai para um recipiente de metal. Os batimentos cardíacos de Jorge se aceleram e dá para ver o órgão pulsando contra o seu diafragma.

Um aparelho revela a atividade elétrica do coração de Jorge. Na mesma tela, bips e linhas representam sua artéria pulmonar, sua pressão venosa central, níveis de oxigênio e o nível de consciência. Os especialistas monitoram o percentual de oxigênio saturado do sangue em sua artéria pulmonar e os níveis de coagulação do sangue — entre tantos outros processos necessários para o funcionamento do corpo humano.

No Rio, são realizados entre 8 e 12 transplantes de figado por mês num único hospital

Os médicos têm um tempo determinado para completar a troca e conectar o fígado novo às artérias e veias de Jorge – no máximo algumas horas. O coração de Jorge bate forte. Juntos, os três cirurgiões colocam suavemente o fígado saudável na cavidade recém-liberada. “Beleza, beleza”, diz Reinaldo.

Agora começa a parte mais difícil: suturar o fígado saudável ao corpo, artéria por artéria, veia por veia. São 23h e a sala está silenciosa. Apenas o barulho dos monitores e da batida estável do coração de Jorge são ouvidos. De vez em quando, Reinaldo exala um longo suspiro e se alonga. Então volta a suturar com atenção. O novo fígado vai ficando cada vez mais vermelho à medida que é suturado ao corpo de Jorge e o sangue começa a fluir pelo órgão.

O tempo passa. O trabalho continua. Depois de mais ou menos uma hora e meia, vem a parte mais fácil. Suturar o abdômen de Jorge. As mãos dos cirurgiões se movem rapidamente. A enfermeira corta os pontos em sintonia perfeita com os movimentos dos médicos. O último ponto é colocado às 00:45. Os cirurgiões se afastam, conversando. A anestesia de Jorge começa a ceder: ele move a cabeça e começa a piscar os olhos.

Com os olhos bem abertos, ele arqueia as costas e começa a repetir: “Eu quero morrer, me deixem morrer. Sinto dor por todo o corpo, me deixem morrer”. Os cirurgiões continuam batendo papo – aparentemente essa é uma reação normal em pacientes que acabam de acordar da anestesia depois de um grande procedimento cirúrgico. Com calma e gentileza, eles tiram Jorge da mesa de operação e o transferem para uma maca. Ele continua a gritar. Sua voz ecoa pelos corredores, enquanto ele é transportado para a unidade de terapia intensiva.

A UTI é fria e silenciosa. Todos os pacientes estão dormindo. Já são 01h30 da madrugada. Jorge já está mais calmo e funcionários o transferem da maca para uma cama. Ele ficará cinco dias na UTI, onde receberá drogas para impedir a rejeição ao novo órgão. Depois disso, ele permanecerá no hospital por até um mês para que os estágios iniciais de sua recuperação possam ser monitorados de perto pela equipe médica.

Os médicos e enfermeiras fizeram tudo o que podiam, mas, no final, é a doença, seja ela o alcoolismo ou a Hepatite C, que decide se o novo fígado irá prolongar significativamente a vida – e a qualidade de vida – do paciente. Jorge Martins de Aguilar se recuperou bem da cirurgia e segue a sua vida.

Erin Stone

Formou-se na Tufts University, em 2014, tendo Estudos americanos como curso principal, e Comunicação de Massa e Estudos de Mídia, como curso secundário. Já trabalhou como estagiária para a National Geographic Books e para a Revista National Geographic. Atualmente é Pesquisadora Freelancer para a Revista The Magazine e foi recentemente premiada pelo NG Young Explorer's Grant .

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