O Ministério da Saúde vai reformular a política de atendimento a usuários de drogas lícitas e ilícitas, a partir das discussões na V Conferência de Saúde Mental, que será realizada em outubro. O objetivo é atualizar toda a estratégia para a política de drogas, com maior intensidade em redução de danos (RD) e garantindo serviços com ações de educação continuada. Em nota ao #Colabora, o ministério informou que a iniciativa é fruto da compreensão de que “é necessário oferecer opções para o cuidado além da abstinência”.
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A reformulação será implementada três anos após o ex-presidente Jair Bolsonaro criar a nova Política Nacional sobre Drogas (PNAD). Uma das principais mudanças foi a adoção da abstinência como abordagem preferencial em substituição à redução de danos. O decreto também abriu espaço para potencializar ações de criminalização dos consumidores, além de estimular maior emprego de violência por parte do Estado na repressão ao tráfico. em áreas dominadas por ações criminosas, como favelas e periferias. Toda a política sobre drogas ficou sob responsabilidade do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
Com a revogação do decreto no Governo Lula, o Ministério da Saúde voltou a ter responsabilidade na PNAD, que segue sob coordenação do MJSP. A política sobre drogas foi determinada pelo ex-presidente não revogou a portaria do Ministério da Saúde, de 2003, que regula a atenção integral para usuários de drogas através do Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, a PNAD de Bolsonaro expandiu os obstáculos para a execução de ações baseadas em RD ao colocar a estratégia em segundo plano e centralizar as ações no Ministério da Justiça.
A gestão de Nísia Trindade prometeu priorizar a expansão dos CAPS-AD e das Unidades de Acolhimento nos próximos quatro anos. Segundo a pasta, no primeiro semestre de 2023, mais de R$ 32 milhões foram repassados aos estados e municípios com este objetivo. O ministério também comunicou que novos serviços de redução de danos estão em processo de avaliação para serem habilitados ainda este ano.
Ao todo, são 452 Centros de Atenção Psicossocial, Álcool e Outras Drogas (CAPS-AD) que oferecem suporte a usuários em situações de emergência, sejam elas geradas pelo consumo ou pela abstinência, como momentos de crise ou necessidade de auxílio no processo de reabilitação. Nos CAPs, também são oferecidas práticas terapêuticas e preventivas para os usuários e seus familiares.
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Veja o que já enviamosA pasta ainda disponibiliza suporte residencial através de 75 Unidades de Acolhimento (UA) espalhadas pelo Brasil. Elas funcionam como uma moradia transitória destinada àqueles com maior vulnerabilidade, geralmente em situação de rua, que necessitam de cuidado integral. A lógica de cuidado das duas iniciativas baseia-se em deslocar o tratamento de lugares distantes de interação humana – como os adotados em comunidades terapêuticas, ampliadas e incentivadas no Governo Bolsonaro, com tratamentos focados somente na abstinência – para áreas com trocas sociais mais similares ao cotidiano, facilitando a adaptação do paciente.
O Ministério da Saúde classifica a temática do uso de drogas como desafiadora “por ser um problema complexo que envolve áreas diversas [como] saúde, assistência social, justiça, trabalho, moradia, etc.”. O maior obstáculo apontado é “propor e implementar ações transversais que atendam às necessidades das pessoas em sua diversidade, destacando as diferenças no âmbito do consumo, que pode ser dependente, abusivo ou apenas recreativo”.
Redução de danos
A redução de danos concentra-se em trabalhar diretamente com as pessoas sem julgar, discriminar, coagir ou exigir que elas deixem de usar drogas para receber ajuda. As primeiras experiências oficiais ocorreram na Inglaterra. Durante a Primeira Guerra Mundial, os soldados eram tratados com morfina e, por isso, muitos ficaram viciados. Para reduzir os riscos da retirada brusca, o país argumentou ser uma obrigação do Estado e uma comissão do Ministério da Saúde do Reino Unido autorizou os médicos do país a prescrever a droga para dependentes em situação de risco.
As políticas baseadas em redução de danos voltaram a ganhar força no auge da epidemia de aids, nos anos 1980, quando havia distribuição de seringas para tentar impedir a contaminação de usuários de drogas. “A ideia da redução de danos é que você possa lidar com eventuais problemas ligados ao uso de drogas de uma forma que a criminalização e a repressão não acabem sendo mais um desses problemas”, explica Francisco Netto, secretário-executivo do Programa Institucional de Política de Drogas, Direitos Humanos e Saúde Mental da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O pesquisador, psicólogo com mestrado em saúde pública, explica que a estratégia parte do mesmo pressuposto que orienta a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Constituição do Brasil: o direito universal à saúde.
Apesar dos desafios, Francisco Netto considera a redução de danos a melhor estratégia no âmbito da saúde e afirma que ela pode ser aplicada em qualquer lugar, desde que haja adaptações que considerem as dimensões culturais, sociais, políticas e ambientais. “Se você mora em um país andino, existe o uso da folha de coca, que tem uma quantidade muito pequena de cocaína. Eles [a população] usam para poder trabalhar. Faz parte da cultura. Já quando você chega em um grande centro europeu, a forma como se dá esse uso é totalmente distinta”, exemplificou o pesquisador.
O especialista da Fiocruz explica que a abordagem não é exclusiva da questão das drogas e que pode ser aplicada em qualquer situação que haja possibilidade de efeitos negativos. “Um exemplo clássico é o cinto de segurança. Carros podem ser perigosos. Se a pessoa está dentro do carro, acontece um acidente e ela está sem cinto, o dano potencial é muito maior. Então o cinto de segurança é uma redução de danos”, apontou o secretário-executivo do programa da Fiocruz.
Francisco Netto destaca que a estratégia de redução de danos almeja atingir a toda a sociedade, inclusive os usuários recreativos, isto é, que usam substâncias psicoativas esporadicamente em situações de lazer e entretenimento sem grandes prejuízos à integridade física e psicológica. Ao considerar a liberdade do indivíduo de fazer o uso, a estratégia busca, além de informar sobre os efeitos e atitudes para o uso seguro, estimular o debate crítico sobre as motivações do consumo. “A gente não considera que o uso de drogas deve ser tratado sempre. Na verdade, é o uso problemático que a gente está preocupado. E, quando ele acontece e você está na esfera criminal da segurança, a tendência é só piorar“, argumenta o pesquisador da Fiocruz.
Essa política de drogas com foco na repressão e na criminalização, fortalecida pelo Governo Bolsonaro, é alvo das críticas. “A lógica que às vezes se trabalha na política de drogas é que, como o uso pode ser danoso, deve-se simplesmente proibir a existência. Isso se mostra na verdade ineficaz. Nós não conseguimos cessar o uso porque simplesmente desejamos que isso não exista”, afirma Francisco Netto.
Apologia ao cuidado
Coordenadora da Escola Livre Redução de Danos, a psicóloga Priscilla Gadelha conta que a mudança de política no Governo Bolsonaro contribuiu para que os ataques à organização, sediada em Pernambuco, se tornassem mais ferrenhos. As investidas contra a estratégia de redução de danos são constantemente acompanhadas de acusações de apologia ao tráfico e ao uso de drogas. “Faço apologia ao cuidado”, refuta Gadelha
Segundo a psicóloga, ex-secretária-executiva do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas (Cepad) de Pernambuco, há um senso comum de que todo usuário é criminoso e que eles são a causa da violência no país: “Jogar isso [os problemas de segurança pública] para as substâncias na chamada ‘Guerra às Drogas’ é uma grande mentira, porque, na verdade, é uma guerra contra populações e territórios”, afirma.
A ofensiva recente de maior impacto contra sua organização ocorreu durante o Carnaval, em Olinda. A Polícia Civil interditou temporariamente o espaço onde acontecia a ação “Fique Suave”, no bairro do Carmo, após denúncias de distribuição de um suposto kit drogas. A equipe da Escola Livre estava, na verdade, entregando aos foliões um kit com protetor solar, camisinha, canudos, seda, piteira, panfletos informativos, entre outros itens.
Apesar de mais intensa nos últimos anos, essa oposição mentirosa não é novidade para Gadelha, para quem a hostilidade “já faz parte da dinâmica” e revela uma tentativa de afastamento do debate. “É uma tentativa de nos afastar de um debate sério e necessário. A gente vem ao longo do tempo percebendo o quanto incomodamos. Não é porque o que a gente faz é fora do normal. É porque eles sabem que o que fazemos pode mudar a sociedade brasileira”, afirmou a coordenadora da Escola Livre.
Nas palavras da psicóloga, a proposta da Escola Livre é colaborar no aprendizado de “temas que não são ensinados”. Os redutores de danos têm o objetivo de informar a sociedade sobre os efeitos das substâncias psicoativos, distribuir material higienizado, como agulhas e piteiras, organizar palestras e rodas de conversa, além de disponibilizar espaços para descanso e consumo de água e alimentos. “As pessoas vão se aproximando das drogas ao longo da vida e de relações com pessoas, com substâncias e com ambientes. A Redução de Danos é o lugar onde ela pode ter um ‘entre’ essas relações. E esse ‘entre’ pode ser o cuidado, pode ser uma pausa, uma alimentação, uma informação ou até o pensamento crítico”, afirma Priscilla Gadelha.