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No mestrado, Paulo se dedica ao Sofia, sigla que significa Software Intensive Ablation, uma técnica que consiste na incisão de um eletrodo em um paciente com câncer para que o aparelho esquente o tumor. “A combinação de frequência muito rápida (500 Khz) e uma quantidade de energia gera aquecimento na região do tumor, enfraquecendo a célula cancerígena, porque entre 40º e 50º ela sofre uma deterioração maior que a célula normal”, explica Paulo. Segundo ele, isso evita a cirurgia, um dos procedimentos mais comuns no tratamento de câncer.
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Veja o que já enviamosA gente quer levar a técnica para a rede pública, para o Sistema Único de Saúde, produzindo um equipamento com tecnologia totalmente nacional, para ser incorporado ao SUS
[/g1_quote]A técnica não é nova, segundo o pesquisador. Já há métodos semelhantes sendo aplicados desde os anos 1980. Só que apenas na medicina privada, e o objetivo do grupo que desenvolve o Sofia é social. “A gente quer levar a técnica para a rede pública, para o Sistema Único de Saúde, produzindo um equipamento com tecnologia totalmente nacional, para ser incorporado ao SUS”, anuncia Paulo.
Em parceria com a Universidade Federal de Goiás, o Sofia já passou pela fase chamada de pré-clínica, quando o aparelho foi testado em ratos e porcos. Como deu certo nos animais, os pesquisadores se preparam para testá-lo em pacientes com a doença, e aí entra o velho grilhão da pesquisa brasileira: a falta, ou a demora na liberação de verbas.
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De acordo com Suélia de Siqueira Rodrigues Fleury Rosa, coordenadora das duas pesquisas, o Sofia participa de edital do Ministério da Saúde para conseguir dinheiro e ser testado em oito pacientes. “O ideal seriam R$ 4 milhões”, informa, explicando que o Sofia precisa pagar seguro a pacientes terminais em quem será testado e essa despesa gira em torno de R$ 500 mil (Perguntamos ao Ministério da Saúde em que pé está a liberação de verbas para as duas pesquisas, mas até o fechamento desta reportagem não obtivemos resposta).
Na bancada ao lado, no laboratório vizinho ao Sofia, está o Rapha (cura em hebraico), outro aparelhinho que nasceu da pesquisa acadêmica. Bem mais barato (segundo Suélia, para prosseguir o projeto precisa de R$ 400 mil) e sem tanta complexidade técnica, o Rapha tem um alcance social ainda maior: ele é usado para tratar feridas em diabéticos, especialmente nos pés, já que esses pacientes têm muita dificuldade com a cicatrização. “A 2ª causa de amputação no Brasil é a diabetes, depois de acidente automobilístico. O Rapha impacta positivamente porque ele fecha a ferida, com isso a pessoa não amputa e não é aposentada por invalidez, o que gera impacto também na Previdência”, encadeia Suélia.
O Rapha também já foi testado em animais e, justamente porque é mais simples, está em fase mais adiantada do que seu vizinho de laboratório. E já é utilizado experimentalmente em dois hospitais públicos do Distrito Federal e aplicado a domicílio em alguns pacientes. Mas além da dificuldade financeira, outro fator une os dois projetos: entrar na rede pública e serem adotados como técnica oficial de tratamento do SUS.
Se Rapha e Sofia chegaram até aqui, é porque os pesquisadores deram muito pelos dois projetos, inclusive dinheiro. Em 2018, uma vaquinha entre professores e alunos envolvidos nas duas pesquisas arrecadou R$ 15 mil, dinheiro usado, no caso do Sofia, para comprar equipamentos, como eletrodos, e fígado de porco. Tudo para que a pesquisa não parasse. “Eu vejo esse dinheiro de volta não como dinheiro, mas sim como resultado. Esse é o grande diferencial do grupo. É claro que seria muito bom se esse equipamento fosse comercializado, que uma grande empresa pegasse e produzisse a um custo muito reduzido para a sociedade, como nós fazemos hoje aqui, mas o objetivo comercial não é o nosso fim”, explica Paulo. Só ele já tirou do bolso e pôs no Sofia R$ 7 mil. No programa também são injetados mensalmente os R$ 1,1 mil da bolsa produtividade que Suélia recebe do CNPq. Como coordenadora, ela tem esperança de que no 2º semestre o dinheiro seja liberado pelo Ministério da Saúde e as duas pesquisas prossigam sem depender até da abnegação financeira dos pesquisadores.
Para eles, a dificuldade que as pesquisas enfrentam no país é reflexo da visão que a sociedade tem do que se faz e produz na academia. “É uma visão bem limitada. Culturalmente a gente não ouve falar em pesquisa no ensino médio. Não se sabe o que se faz na universidade. Todo mundo acha que a universidade é um local em que você senta, o professor dá aula pra você, e você sai dali, vai pra sua casa, estuda para uma prova e assim você vai seguindo os anos até concluir a sua graduação”, argumenta Paulo, lembrando que em países como EUA e Alemanha no ensino médio já se fala sobre pesquisas. Perguntamos ao Conselho Federal de Medicina se os conselheiros têm conhecimento das duas pesquisas, mas o órgão não nos respondeu.
Suélia concorda que não é justa a percepção que a sociedade tem da academia. “Quando você põe uma bolsa num valor de R$ 3 mil, para a sociedade isso é muito, porque o salário mínimo é baixo, mas para quem ‘tá sentado numa cadeira há anos estudando, isso é pouco”. Ela lamenta casos país afora em que pessoas sem qualificação ganham muito mais do que um pesquisador, e completa: “Existem docentes dentro da instituição que só fazem o mínimo, que é dar aulas, mas a maioria faz muito mais do que isso. A gente toca a parte administrativa junto com os funcionários técnicos e administrativos e nós não ganhamos para isso”.
Entre avanços, incertezas e o desconhecimento das pessoas, a equipe insiste e vence todos os dias um outro obstáculo, que está dentro de cada pesquisador: o desânimo que às vezes bate. “Você vir para o laboratório e não ter a certeza de que o projeto chegará ao objetivo que todo o grupo espera é frustrante”, admite Luciana Alves Fernandes, 24, mestranda que ganha uma bolsa de R$ 1,5 mil e que por isso está “liberada” das vaquinhas, ela conta, divertida. Luciana credita a persistência da equipe à energia que a coordenadora transmite. “A gente acaba ficando otimista e enxerga o final do projeto. E a gente trabalha com a perspectiva de que vai alcançar o objetivo final”, conta, confiante. A receita de Suélia para que ninguém esmoreça é simples: sentar e trabalhar com todos, ali, ao lado deles. “Eles se equiparam, né? Pô ela já tá no trabalho há tanto tempo, já passou por tanta coisa e mesmo assim está aqui, se envolvendo, executando… isso faz com que eles se sintam motivados a fazer. Só fazendo é que a pessoa de fato sabe mandar”, acredita.
Outro combustível da superação é o sonho, em alguns casos, sonhos de infância, como o que move Erick Lucas Castro Germano, 24, aluno do curso de ciências naturais, outra área envolvida nas pesquisas, além da engenharia, biologia e medicina, entre outras. “Eu sempre quis ser cientista, desde criança. E sei que a pesquisa feita de forma séria contribui para a sociedade. Eu pretendo levar resultados para a sociedade, inovar no centro de tecnologia sempre buscando formas de que meu trabalho na universidade contribua com retorno para sociedade em termos de conhecimento científico”, explica.
Se as verbas para a pesquisa se tornarem proporcionais à dedicação desse grupo da UnB, o Brasil começará uma revolução científica.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”none” size=”s” style=”solid” template=”01″]43/100 A série #100diasdebalbúrdiafederal pretende mostrar, durante esse período, a importância das instituições federais e de sua produção acadêmica para o desenvolvimento do Brasil.
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