Pesquisas podem reduzir cirurgia em pacientes com câncer

Professores e alunos da UnB investem tempo e dinheiro para melhorar os tratamentos na rede pública

Por André Giusti | ODS 3ODS 4 • Publicada em 29 de junho de 2019 - 08:00 • Atualizada em 30 de junho de 2019 - 14:38

De aplicação simples, Rapha (cura em hebraico) pode evitar amputação em diabéticos. Foto André Giusti
De aplicação simples, Rapha (cura em hebraico) pode evitar amputação em diabéticos. Foto André Giusti

Antes das 9h de uma segunda-feira fria o professor Paulo Robertos dos Santos, de 35 anos, já está debruçado em sua bancada de trabalho no laboratório de engenharia biomédica da Universidade de Brasília. Ele divide esse espaço com cerca de 40 membros da comunidade acadêmica que tocam dois projetos de pesquisa da Faculdade de Engenharia voltados para a área médica: Rapha e Sofia.

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No mestrado, Paulo se dedica ao Sofia, sigla que significa Software Intensive Ablation, uma técnica que consiste na incisão de um eletrodo em um paciente com câncer para que o aparelho esquente o tumor. “A combinação de frequência muito rápida (500 Khz) e uma quantidade de energia gera aquecimento na região do tumor, enfraquecendo a célula cancerígena, porque entre 40º e 50º ela sofre uma deterioração maior que a célula normal”, explica Paulo. Segundo ele, isso evita a cirurgia, um dos procedimentos mais comuns no tratamento de câncer.

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A gente quer levar a técnica para a rede pública, para o Sistema Único de Saúde, produzindo um equipamento com tecnologia totalmente nacional, para ser incorporado ao SUS

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A técnica não é nova, segundo o pesquisador. Já há métodos semelhantes sendo aplicados desde os anos 1980. Só que apenas na medicina privada, e o objetivo do grupo que desenvolve o Sofia é social. “A gente quer levar a técnica para a rede pública, para o Sistema Único de Saúde, produzindo um equipamento com tecnologia totalmente nacional, para ser incorporado ao SUS”, anuncia Paulo.

Em parceria com a Universidade Federal de Goiás, o Sofia já passou pela fase chamada de pré-clínica, quando o aparelho foi testado em ratos e porcos. Como deu certo nos animais, os pesquisadores se preparam para testá-lo em pacientes com a doença, e aí entra o velho grilhão da pesquisa brasileira: a falta, ou a demora na liberação de verbas.

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De acordo com Suélia de Siqueira Rodrigues Fleury Rosa, coordenadora das duas pesquisas, o Sofia participa de edital do Ministério da Saúde para conseguir dinheiro e ser testado em oito pacientes. “O ideal seriam R$ 4 milhões”, informa, explicando que o Sofia precisa pagar seguro a pacientes terminais em quem será testado e essa despesa gira em torno de R$ 500 mil (Perguntamos ao Ministério da Saúde em que pé está a liberação de verbas para as duas pesquisas, mas até o fechamento desta reportagem não obtivemos resposta).

Vaquinha entre a equipe ajuda a manter equipamentos do laboratório. Foto André Giusti

Na bancada ao lado, no laboratório vizinho ao Sofia, está o Rapha (cura em hebraico), outro aparelhinho que nasceu da pesquisa acadêmica. Bem mais barato (segundo Suélia, para prosseguir o projeto precisa de R$ 400 mil) e sem tanta complexidade técnica, o Rapha tem um alcance social ainda maior: ele é usado para tratar feridas em diabéticos, especialmente nos pés, já que esses pacientes têm muita dificuldade com a cicatrização. “A 2ª causa de amputação no Brasil é a diabetes, depois de acidente automobilístico. O Rapha impacta positivamente porque ele fecha a ferida, com isso a pessoa não amputa e não é aposentada por invalidez, o que gera impacto também na Previdência”, encadeia Suélia.

O Rapha também já foi testado em animais e, justamente porque é mais simples, está em fase mais adiantada do que seu vizinho de laboratório. E já é utilizado experimentalmente em dois hospitais públicos do Distrito Federal e aplicado a domicílio em alguns pacientes.  Mas além da dificuldade financeira, outro fator une os dois projetos: entrar na rede pública e serem adotados como técnica oficial de tratamento do SUS.

Se Rapha e Sofia chegaram até aqui, é porque os pesquisadores deram muito pelos dois projetos, inclusive dinheiro. Em 2018, uma vaquinha entre professores e alunos envolvidos nas duas pesquisas arrecadou R$ 15 mil, dinheiro usado, no caso do Sofia, para comprar equipamentos, como eletrodos, e fígado de porco. Tudo para que a pesquisa não parasse. “Eu vejo esse dinheiro de volta não como dinheiro, mas sim como resultado. Esse é o grande diferencial do grupo. É claro que seria muito bom se esse equipamento fosse comercializado, que uma grande empresa pegasse e produzisse a um custo muito reduzido para a sociedade, como nós fazemos hoje aqui, mas o objetivo comercial não é o nosso fim”, explica Paulo. Só ele já tirou do bolso e pôs no Sofia R$ 7 mil. No programa também são injetados mensalmente os R$ 1,1 mil da bolsa produtividade que Suélia recebe do CNPq. Como coordenadora, ela tem esperança de que no 2º semestre o dinheiro seja liberado pelo Ministério da Saúde e as duas pesquisas prossigam sem depender até da abnegação financeira dos pesquisadores.

Para eles, a dificuldade que as pesquisas enfrentam no país é reflexo da visão que a sociedade tem do que se faz e produz na academia. “É uma visão bem limitada. Culturalmente a gente não ouve falar em pesquisa no ensino médio. Não se sabe o que se faz na universidade. Todo mundo acha que a universidade é um local em que você senta, o professor dá aula pra você, e você sai dali, vai pra sua casa, estuda para uma prova e assim você vai seguindo os anos até concluir a sua graduação”, argumenta Paulo, lembrando que em países como EUA e Alemanha no ensino médio já se fala sobre pesquisas.  Perguntamos ao Conselho Federal de Medicina se os conselheiros têm conhecimento das duas pesquisas, mas o órgão não nos respondeu.

Pesquisadores tiram do próprio bolso dinheiro para fígado de porco usado em testes do Sofia. Foto André Giusti

Suélia concorda que não é justa a percepção que a sociedade tem da academia. “Quando você põe uma bolsa num valor de R$ 3 mil, para a sociedade isso é muito, porque o salário mínimo é baixo, mas para quem ‘tá sentado numa cadeira há anos estudando, isso é pouco”. Ela lamenta casos país afora em que pessoas sem qualificação ganham muito mais do que um pesquisador, e completa: “Existem docentes dentro da instituição que só fazem o mínimo, que é dar aulas, mas a maioria faz muito mais do que isso. A gente toca a parte administrativa junto com os funcionários técnicos e administrativos e nós não ganhamos para isso”.

Entre avanços, incertezas e o desconhecimento das pessoas, a equipe insiste e vence todos os dias um outro obstáculo, que está dentro de cada pesquisador: o desânimo que às vezes bate. “Você vir para o laboratório e não ter a certeza de que o projeto chegará ao objetivo que todo o grupo espera é frustrante”, admite Luciana Alves Fernandes, 24, mestranda que ganha uma bolsa de R$ 1,5 mil e que por isso está “liberada” das vaquinhas, ela conta, divertida. Luciana credita a persistência da equipe à energia que a coordenadora transmite. “A gente acaba ficando otimista e enxerga o final do projeto. E a gente trabalha com a perspectiva de que vai alcançar o objetivo final”, conta, confiante. A receita de Suélia para que ninguém esmoreça é simples: sentar e trabalhar com todos, ali, ao lado deles. “Eles se equiparam, né? Pô ela já tá no trabalho há tanto tempo, já passou por tanta coisa e mesmo assim está aqui, se envolvendo, executando… isso faz com que eles se sintam motivados a fazer. Só fazendo é que a pessoa de fato sabe mandar”, acredita.

Outro combustível da superação é o sonho, em alguns casos, sonhos de infância, como o que move Erick Lucas Castro Germano, 24, aluno do curso de ciências naturais, outra área envolvida nas pesquisas, além da engenharia, biologia e medicina, entre outras. “Eu sempre quis ser cientista, desde criança. E sei que a pesquisa feita de forma séria contribui para a sociedade. Eu pretendo levar resultados para a sociedade, inovar no centro de tecnologia sempre buscando formas de que meu trabalho na universidade contribua com retorno para sociedade em termos de conhecimento científico”, explica.

Se as verbas para a pesquisa se tornarem proporcionais à dedicação desse grupo da UnB, o Brasil começará uma revolução científica.

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43/100 A série #100diasdebalbúrdiafederal pretende mostrar, durante esse período, a importância  das instituições federais e de sua produção acadêmica para o desenvolvimento do Brasil.

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André Giusti

Jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. É pós-graduado em Gestão da Comunicação das Organizações pelo UniCeub. É carioca e mora em Brasília há 20 anos. Também é escritor e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br

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