Kátia Brasil e Emily Costa*
Manaus (AM) e Boa Vista (RR) – A agência de jornalismo independente Amazônia Real localizou, entre sexta-feira (26) e domingo (29), os túmulos de três bebês, todos do sexo masculino, da etnia Yanomami, sendo dois do subgrupo Sanöma. As crianças recém-nascidas morreram entre os dias 29 de abril e 25 maio em hospitais públicos de Roraima por Covid-19 ou suspeita do coronavírus. Para as mães das crianças, os filhos estão desaparecidos. Elas não foram informadas pelas autoridades de saúde que os corpos dos bebês estão enterrados em sepulturas comuns no Parque Cemitério Campo da Saudade, em Boa Vista, na capital de Roraima.
O corpo de um quarto bebê Sanöma, que nasceu prematuro e tinha hidrocefalia, foi encontrado pela reportagem no Instituto Médico Legal (IML). Em entrevista à agência, Dario Kopenawa Yanomami, diretor da Hutukara Associação Yanomami (HAY), disse que as mães das crianças estão sofrendo muito pela morte dos filhos e querem que os corpos sejam retirados dos túmulos do cemitério de Boa Vista para levá-los de volta ao território indígena e submetidos ao ritual funerário da cultura Yanomami nas aldeias. Ele disse que as mães não sabiam dos sepultamentos e nem mesmo foram consultadas pelas autoridades de Roraima. “Para elas, os filhos estão desaparecidos”, diz.
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Veja o que já enviamos“A gente não sabe onde os nossos parentes estão enterrados, qual o cemitério, qual local. Isso é um pouco difícil, estamos preocupados. Como a Hutukara representa os Yanomami, temos direito de saber, procurar informações, esclarecimento, a gente está cobrando”, disse Dario Yanomami, destacando que a Hutukara encaminhou ofício ao Ministério Público Federal (MPF) e aguarda resposta. “Estamos esperando o posicionamento dessa questão”. A Hutukara não divulgou os nomes das mães.
Conforme a reportagem publicou em 5 de junho, as mortes dos quatro bebês foram anunciadas pela Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana. Na ocasião, o levantamento incluiu dois óbitos de bebês pelo novo coronavírus e mais duas mortes suspeitas de Covid-19.
[g1_quote author_name=”Mãe sanöma, sub-grupo yanomâmi” author_description=”Apelo a autoridades feito em vídeo” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Eu quero falar com você que é uma autoridade. Preciso que me ajude. Não permita que aumente a minha angústia. No dia 11, quando eu for de volta, não queria voltar sozinha. É difícil demais para mim. Eu cheguei aqui com o meu bebê, preciso que você me ajude a levar de volta
[/g1_quote]A Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana disse que o primeiro óbito de criança, registrado em 29 de abril, foi de um recém-nascido no Hospital e Maternidade Nossa Senhora de Nazaré, em Boa Vista. A mãe Yanomami, que é da região do Catrimani, testou positivo para Covid-19. Segundo a organização, o sepultamento da criança no cemitério obedeceu à norma de biossegurança, sem a cremação tradicional na aldeia, como é o ritual funerário da cultura Yanomami. As outras três crianças mortas são de famílias do subgrupo Sanöma, da região de Auaris, também em Roraima.
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Na quarta-feira (24), em entrevista à jornalista Eliane Brum, colunista do jornal El País, uma das mães das crianças Sanöma disse que queria o corpo do filho de volta à aldeia. “Sofri para ter essa criança. E estou sofrendo. Meu povo está sofrendo. Preciso levar o corpo do meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”. A entrevista teve uma grande repercussão e a hashtag #criançasyanomami foi parar no topo dos trends topics do Twitter na sexta-feira (27).
Túmulos sem identificação
Boa Vista, capital de Roraima, tem pouco mais de 280 mil habitantes e dois cemitérios: um público e outro privado. Após a entrevista com Dario Kopenawa Yanomami, que disse que as mães desconheciam a localização das crianças Yanomami, a reportagem da Amazônia Real foi a campo, tomando o devido cuidado em relação à segurança da prevenção da Covid-19, para encontrar os túmulos dos bebês da etnia.
Foram três dias de buscas – 26, 27 e 28 de junho – entre o Parque Cemitério Campo da Saudade e o Instituto Médico Legal (IML) para confirmar o paradeiro dos corpos das crianças. Os nomes dos pais das crianças não serão divulgados em respeito à cultura e ao luto do povo Yanomami.
Na sexta-feira (26), a reportagem encontrou no cemitério particular Campo da Saudade o túmulo do bebê Yanomami, do sexo masculino, que morreu de Insuficiência Renal Respiratória Aguda e pneumonia extrema no dia 29 de abril, um dia depois de nascer no hospital Hospital e Maternidade Nossa Senhora de Nazaré. Sua mãe foi testada positivo para Covid-19. O corpo do bebê só foi enterrado três semanas depois do falecimento, em 20 de maio, conforme a documentação que a reportagem teve acesso.
O segundo túmulo de criança Yanomami encontrado pela reportagem foi no sábado (27), em nova busca no cemitério Campo da Saudade. Do sexo masculino e do subgrupo Sanöma, o bebê tinha dois meses de vida quando morreu no dia 25 de maio de Insuficiência Renal Aguda e suspeita de Covid-19, no Hospital da Criança Santo Antônio, administrado pela Prefeitura de Boa Vista. De acordo com o documento do cemitério, o sepultamento aconteceu às 15h50.
Ainda no sábado, a reportagem encontrou o terceiro túmulo. O bebê, do sexo masculino e também Sanöma, morreu com três dias de nascido, de infecção neonatal e suspeita de Covid-19, no Hospital da Criança. Ele foi igualmente enterrado no Campo da Saudade, no dia 25 de maio, mas às 20h15, e ao lado do corpo do primeiro bebê sanöma.
[g1_quote author_name=”Bruce Albert” author_description=”Antropólogo” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Dispor de um defunto sem rituais funerários tradicionais constitui, para os Yanomami, como para qualquer outro povo, um ato inumano e, portanto, infame
[/g1_quote]A reportagem ainda localizou entre sábado (27) e domingo (28) o corpo do quarto bebê Yanomami no Instituto Médico Legal (IML) de Boa Vista. Segundo o Conselho Distrital de Saúde Yanomami (Condisi-Y), a criança nasceu prematura e com hidrocefalia, indo a óbito no dia 1º de maio. Seu corpo foi levado ao IML, onde permanece para ser entregue à família, pois testou negativo para Covid-19. Assim, segundo o instituto, o corpo pode ser trasladado à Terra Indígena Yanomami por não colocar a população em risco de contaminação do vírus. O sexo da criança não foi informado.
O administrador Anselmo Martinez, do cemitério Campo da Saudade, explicou a situação de remoção dos corpos do local. “Só é possível retirar corpos sepultados por via judicial ou se aguardando o tempo mínimo para a exumação, que é de três anos para adultos e dois anos para crianças e recém-nascidos”, disse. Ele afirmou que os três bebês yanomami foram enterrados em sepulturas cedidas gratuitamente por intermédio da Secretaria do Trabalho e Bem Estar Social de Roraima.
Falta de respeito e negligência
Não é a primeira vez que pais da etnia Yanomami não são informados pelas autoridades de saúde sobre os enterros de seus filhos em cemitérios de Boa Vista. O primeiro caso do novo coronavírus entre os Yanomami foi registrado em um jovem de 15 anos, no município de Alto Alegre, região de grande incidência de garimpeiros no rio Uraricoera, na região Leste de Roraima. Ele sentiu os primeiros sintomas da doença em 18 de março, passou por diversos atendimentos, chegando a receber alta médica, e só foi testado para a Covid-19 em 6 de abril, morrendo três dias depois no Hospital Geral de Roraima, na capital.
Os pais do jovem Yanomami não foram informados pelas autoridades do Ministério da Saúde sobre o sepultamento do filho, que aconteceu na noite do dia 9 de abril no Parque Cemitério Campo da Saudade, em Boa Vista. Na ocasião, Dario Yanomami disse que à Amazônia Real que faltaram respeito e conhecimento das autoridades sobre as cerimônias tradicionais da cultura indígena. O caso foi denunciado ao Ministério Público Federal. “Os pais (mesmo estando em Boa Vista) não foram comunicados do enterro, isso está errado e estamos questionando”, afirmou ele.
Para o antropólogo francês Bruce Albert, sepultar vítima Yanomami sem o consentimento de seus familiares “demonstra uma grave falta de ética e uma total ausência de empatia das autoridades sanitárias com o desamparo deste povo face à pandemia de Covid-19”. “Além do mais, dispor de um defunto sem rituais funerários tradicionais constitui, para os Yanomami, como para qualquer outro povo, um ato inumano e, portanto, infame”.
Secretaria confirma oito casos de covid-19 em crianças indígenas
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Portaria Conjunta Nº 1, de 30 de março de 2020, estabeleceu procedimentos excepcionais para sepultamento e cremação de corpos durante a situação de pandemia do coronavírus em razão de exigência de saúde pública. A portaria considerou “a necessidade de providenciar o sepultamento em razão dos cuidados de biossegurança, a manutenção da saúde pública e respeito aos legítimos direitos dos familiares do obituado providenciado a inumação (enterramento)”. Em todo o país, as famílias são comunicadas pelos hospitais sobre a morte dos parentes. Os enterros são realizados na presença de poucos familiares. No caso dos indígenas Yanomami, a informação sobre os enterros não tem sido realizada e isso é recorrente.
A Fundação Nacional do Índio (Funai), quando se posicionou sobre o enterro do jovem de 15 anos sem consentimento dos pais Yanomami no cemitério de Boa Vista, disse que estava em contato com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e enviou uma nota à reportagem. “A Funai conversou com o Dario Yanomami, que pediu esclarecimentos sobre se o corpo poderia retornar à comunidade para os rituais funerários. A Fundação informou que, por medidas de saúde pública, não poderia haver os rituais funerários e que o corpo se encontra sob responsabilidade da Anvisa”, disse o órgão indigenista.
A Funai disse, ainda, que estava realizando o diálogo com as lideranças indígenas explicando os motivos de não se permitir os rituais funerários neste momento em razão da pandemia. Sobre a questão dos sepultamentos aconteceram sem o consentimento dos indígenas, causando-lhes sofrimento, a fundação disse: “a missão da Funai neste momento é sobretudo orientar os povos indígenas, levando informações no sentido de esclarecer e pacificar sobre o perigo de que o corpo volte neste momento à comunidade”. Em Boa Vista, a Anvisa não se pronunciou sobre os enterros de Yanomami.
Procurado pela reportagem, o MPF de Roraima enviou uma nota informando que abriu um procedimento de investigação para garantir que as recomendações médicas e orientações dos especialistas da área de saúde sejam seguidas, mas que levem em conta o direito de luto dos povos indígenas em suas particularidades rituais.
“Foram realizadas reuniões com lideranças indígenas, defesa civil, vigilância sanitária, antropólogos e gestores da saúde, bem como emitidos pedidos de informação e apoio técnico, para garantir o respeito às práticas culturais indígenas tanto quanto possível no atual contexto de pandemia da Covid-19”.
O MPF confirmou que três crianças Yanomami morreram por Covid-19 e foram sepultadas no cemitério Campo da Saudade. “Um outro óbito, não relacionado à Covid-19, aguarda liberação para retorno à comunidade de origem junto com os pais”.
O órgão disse que segue acompanhando todas as notícias de óbitos de indígenas, para garantir a identificação do corpo e posterior retorno à terra indígena quando for sanitariamente seguro e se assim desejar a comunidade de origem.
[g1_quote author_name=”Júnior Yanomami” author_description=”Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Y’ekuana (Condisi-Y)” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Queremos saber se houve negligência de alguém, do hospital, dos médicos
[/g1_quote]A Amazônia Real procurou a Secretaria Municipal de Saúde, responsável, pelo Hospital da Criança Santo Antônio, onde três crianças do subgrupo Sanöma morreram. “As crianças tiveram todo o apoio necessário e por se tratar de indígena yanomami”, disse a secretaria, informando que o sepultamento é de responsabilidade do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y).
“Até o momento oito crianças indígenas testaram positivo para Covid-19 e, destas, três foram a óbito. Todos os procedimentos relacionados aos óbitos estão registrados no livro de ocorrência do serviço social do Hospital. As famílias das vítimas são acompanhadas pela coordenação indígena do Hospital até o momento da entrega do corpo para Dsei Yanomami”, disse a secretaria.
Procurado, Antonio Pereira, coordenador interino do Dsei Yanomami, subordinado ao Ministério da Saúde, não quis comentar sobre os sepultamentos das crianças Yanomami e Sanöma sem a anuência das famílias. O Dsei informou que 150 indígenas foram contaminados pela Covid-19 e registrou quatro mortes.
Já a estatística da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana diz que 168 indígenas foram infectados pelo coronavírus e cinco morreram – sendo três óbitos suspeitos. Dos casos confirmados, 80 foram dentro da Casa de Atendimento de Saúde Indígena (Casai-Y), em Boa Vista, e 24 casos registrados no território indígena, que está invadido por mais de 20 mil garimpeiros, segundo a Hutukara.
Apelo de mãe
À Amazônia Real, o Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Y’ekuana (Condisi-Y), que acompanha o caso, informou que vai pedir uma investigação sobre as circunstâncias das mortes das crianças Yanomami ao MPF. “Queremos saber se houve negligência de alguém, do hospital, dos médicos”, disse Júnior Yanomami, presidente do Condisi-Y.
Neste domingo (28), o próprio Condisi-Y publicou um vídeo de duas mães Sanöma exigindo seus filhos de volta. As palavras das mães, que choravam muito, foram traduzidas por Nelson Sanöma.
“Eu quero falar com você que é uma autoridade. Preciso que me ajude. Não permita que aumente a minha angústia. No dia 11, quando eu for de volta, não queria voltar sozinha, pois essa questão de voltar sem o corpo é muito difícil. É difícil demais para mim. Eu cheguei aqui com o meu bebê, preciso que você me ajude a levar de volta”, disse a mãe sanöma.
Dario Kopenawa Yanomami disse que, desde a morte do jovem de 15 anos, a Hutukara se posiciona contrária aos enterros nos cemitérios de Boa Vista, inclusive mantendo reuniões com o MPF e demais autoridades públicas e ingressando com uma ação judicial.
“Então, agora essa ação está com o MPF e será analisada. Como desenterrar esses parentes que foram enterrados, isso é muito complexo. O jovem foi vitimado de Covid-19. Outras crianças foram suspeitas de Covid-19. É um assunto muito complexo. A gente já mandou esse pedido de esclarecimento. Os órgãos públicos estão estudando e estamos esperando resolver. Quantos dias e quantos meses? Nós vamos esperar os corpos dos nossos parentes”.
Os Yanomami vivem no território entre os estados do Amazonas e Roraima com 9,6 milhões de hectares, na região entre os rios Orinoco e Amazonas. A população é estimada em mais de 26 mil pessoas. São mais de 300 comunidades. A etnia tem quatro subgrupos que falam línguas da mesma família: Yanomae ou Yanomama, Yanomami, Sanöma, Yawari, Waika, Yanomami, Xirixana e Ninam. Segundo a Hutukara, o conjunto cultural e lingüístico composto de nove línguas Yanomami e a língua Ye’kuana, que também está presente no território.
Os Sanöma vivem na região de Awaris, na Terra Indígena Yanomami, nas florestas de montanha do extremo noroeste de Roraima. Eles são exímios produtores de cogumelos, um produto do sistema agrícola Yanomami. Caçadores e coletores, os Sanöma tem um grande conhecimento sobre a biodiversidade de seu território.
*Amazônia Real