Com ajuda de tecnologia, cantora Rim Banna gravou último álbum mesmo com a voz afetada por um câncer

Mesmo com a voz afetada pela doença, ela conseguiu gravar o disco através de uma técnica chamada sonificação (Foto: Divulgação)

Dados hospitalares foram traduzidos em música por meio de técnica de sonificação

Por Carlos Albuquerque | ODS 3ODS 9 • Publicada em 2 de setembro de 2018 - 08:07 • Atualizada em 2 de setembro de 2018 - 19:56

Mesmo com a voz afetada pela doença, ela conseguiu gravar o disco através de uma técnica chamada sonificação (Foto: Divulgação)
Mesmo com a voz afetada pela doença, ela conseguiu gravar o disco através de uma técnica chamada sonificação (Foto: Divulgação)
Mesmo com a voz afetada pela doença, ela conseguiu gravar o disco através de uma técnica chamada sonificação (Foto: Divulgação)

Após resistir por quase nove anos à ocupação do seu corpo por células cancerosas, Rim Banna cedeu a vida em março deste ano, em Nazaré, a mesma cidade onde nasceu há 51 anos.  Antes, porém, a cantora e compositora palestina conseguiu ouvir – na cama, sem a voz, afetada pela doença, que atingiu suas cordas vocais – aquele que seria o seu derradeiro trabalho, “Voice of resistance”, lançado alguns meses depois pelo selo independente norueguês KKV. O álbum espelha não apenas a batalha de Rim contra o câncer – através de um assombroso uso da tecnologia -, mas também uma luta, bem mais antiga, que ela travava contra outra sofrida ocupação, a dos territórios palestinos por Israel, armada apenas com seus versos.

Feito em parceria com o coletivo eletrônico Checkpoint 303, liderado pelo músico, DJ e produtor tunisiano MoCha, e com o renomado pianista norueguês Bugge Wesseltoft, “Voice of resistance” – co-produzido por Erik Hillestead, dono do KKV – reflete essas duas frentes através de uma singular combinação, impulsionada pela perseverança da cantora. Usando uma técnica chamada sonificação – que permite transformar dados em sons –, MoCha conseguiu “traduzir” os registros hospitalares de Rim (em particular, exames de raios X e tomografias computadorizadas) em arquivos sonoros e, posteriormente, em batidas e efeitos musicais. Por cima dessas bases, Rim – que despontou no começo dos anos 90 com um álbum de canções infantis da Palestina – recitou e até cantou, desafiando ordens médicas, seus próprios poemas. E Wesseltoft completou esse quadro adicionando melodias e improvisos do seu celebrado piano.

“Esse projeto surgiu em 2015, quando eu e Hillestead tivemos um emocionante encontro com Rim em Oslo”, conta MoCha. “Na época, a doença já tinha afetado as cordas vocais dela. Mesmo assim, Rim queria gravar um novo álbum, algo que vinha adiando desde que o câncer foi descoberto. Decidimos, então, partir para um inusitado e radical método de compor, que levasse em conta o estado dela. A ideia era que o disco usasse a arte para fazer uma analogia entre as duas batalhas que ela travou até o fim da vida. Como Rim dizia, ela lutou contra a ocupação do seu corpo pelo câncer da mesma forma como lutou contra a ocupação do seu país”.

Embora o processo de transformar dados em sons esteja longe de ser uma novidade – o sonar e o contador Geiger fazem isso desde o começo do século XX –, a sonificação aplicada à música tem se expandido recentemente, graças ao surgimento de programas e aplicativos que popularizaram a técnica. Foi assim, por exemplo, que cientistas do ALMA, a maior rede de telescópios do mundo, localizada no Chile, criaram ritmos eletrônicos a partir de sinais eletromagnéticos das estrelas e uma pesquisadora da Universidade de Coimbra, Portugal, “encontrou” música em trechos de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões. No começo deste ano, o artista multimídia DJ /rupture (Jace Clayton) fez uma performance em Wall Street combinando vocais acapella com efeitos  musicais extraídos  do mercado de ações.

“Mais do que a técnica e o uso dos algoritmos, o importante é saber como usar esse processo”, explica MoCha. “No caso desse disco, transformamos cada pixel dos exames de Rim em uma onda sonora, que depois foi direcionada para um instrumento virtual.  Esse material foi enviado para Erik Hillestead, que encontrou Rim em um estúdio em Ramallah, onde ela gravou seus poemas. Em janeiro deste ano, ela viajou para Oslo, já numa cadeira de rodas, onde fez as últimas gravações ao lado de Hillestead e de Bugge Wesseltoft. Terminamos o álbum em março, um dia antes de ela morrer”.

O resultado desse dramático tour de force são 15 arrepiantes faixas – misto de poesia falada e arte sonora – em que batidas eletrônicas e toques de jazz embalam os derradeiros lamentos de Rim, como na desafiadora “My song will sound from the squares” (“Você nunca vai silenciar minha voz/Com essa única corda vocal que segue lutando/Como um varal que o vento não consegue atingir”).  O lançamento de “Voice of resistance” – o 13º álbum de Rim Banna – aconteceu em um show em homenagem à cantora, no último dia 31 de julho, em Trondheim, na Noruega, reunindo Bugge Wesseltoft e o Checkpoint 303. Dois meses antes, 58 palestinos foram mortos e 2.700 feridos por tropas israelenses durante protestos na Faixa de Gaza pela inauguração da embaixada norte-americana em Jerusalém.

“Infelizmente, como mostrou esse massacre, o disco já nasce atual e relevante”, reflete MoCha. “Há anos, os palestinos cantam as canções de Rim, que sempre foi um símbolo de resistência. E não há indícios de que isso vai mudar. Como ela diz em ‘My song will sound from the squares’, suas canções vão continuar ecoando nas ruas e nas praças”

O lançamento de “Voice of resistance” aconteceu em um show em homenagem a Rim Banna, no último dia 31 de julho, em Trondheim, na Noruega (Foto: Divulgação)
Carlos Albuquerque

Carlos Albuquerque (ou Calbuque) é jornalista de cultura, biólogo, DJ (daqueles que ainda usam vinil) e ocasional surfista de ondas ridiculamente pequenas. Escreve com a mão esquerda e Darwin é seu pastor.

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