Felipe Melo e Leanderson Lima*
Em um dos dias mais tristes da história da saúde pública do país, o Amazonas começará a transferir pacientes de covid-19 para outros estados. Serão enviados 235 doentes para cinco estados, onde serão atendidos pela rede de hospitais universitários, conforme anunciou o governo estadual nesta quinta-feira (14). Se permanecerem em hospitais de Manaus, eles correm o risco de morrer por falta de oxigênio. O ar alimenta o sistema de respiração artificial, responsável por manter vivos os pacientes internados nos leitos clínicos e nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), cuja taxa de ocupação está perto dos 100%.
A medida foi tomada pelo governo de Wilson Lima (PSC) e divulgada ao longo do dia, com diferentes informações desencontradas. Inicialmente, a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas disse que os 235 pacientes com estado clínico considerado moderado seriam transferidos em aeronaves para hospitais de Maranhão, Goiás, Piauí, Distrito Federal e Rio Grande do Norte. Em nota posterior, o governo do estado afirmou que, ainda nesta quinta, seriam transferidos 90 pacientes, mas apenas para Maranhão, Piauí e Distrito Federal.
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Veja o que já enviamosNo fim da noite, tudo mudou. Os voos marcados para ocorrer na quinta-feira foram adiados para esta sexta-feira (15).
Um dos destinos seria Teresina, capital do Piauí. Em nota, a Fundação Municipal de Saúde (FMS) disse que, por volta de 22h39 (horário de Brasília) recebeu a informação do Ministério da Saúde de que o avião da Força Aérea Brasileira não iria decolar de Manaus, “por falta de oxigênio suficiente para a remoção dos pacientes com segurança”. Segundo a FMS, a previsão do Ministério da Saúde é de realizar a transferência dos pacientes na manhã desta sexta-feira. Procurada, a assessoria de comunicação do governo do Amazonas confirmou o adiamento dos voos, mas não deu mais informações, até o fim da noite de quinta-feira.
Antes do cancelamento, ainda na parte da tarde, a Secretaria de Saúde de Goiás informou que recebeu a requisição, do Ministério da Saúde, de 120 vagas em sua rede hospitalar. Segundo a assessoria, os primeiros pacientes chegariam nesta sexta-feira. Mas, segundo o governo de Goiás, ainda não haviam chegado informações adicionais. “O governo de Goiás segue à disposição e aguarda mais detalhes do MS e SES-AM sobre a lista de pacientes, estado clínico e horário da chegada”, diz a nota. A reportagem também procurou o Ministério da Saúde, mas não obteve respostas.
Embora não esteja citado, o Espírito Santo “está disponibilizando 30 vagas de UTI-COVID para atender pacientes do Amazonas”, anunciou o governador Renato Casagrande em seu Twitter. “Temos condições de recebê-los a partir desta madrugada. O momento exige solidariedade e união dos estados em prol das vidas humanas”. O governo do Amazonas não confirmou se enviará pacientes para o Espírito Santo.
Em nota enviada à Amazônia Real, a assessoria de imprensa da FAB disse que “a Força Aérea Brasileira (FAB) tem previsão de iniciar, nesta sexta-feira (15), o transporte de pacientes, acompanhados de equipes de saúde, de Manaus (AM) para outros estados do País.“Duas aeronaves C-99 do Primeiro Esquadrão do Segundo Grupo de Transporte (1º/2º GT) – Esquadrão Condor, acionadas pelo Comando de Operações Aeroespaciais (COMAE), cumprem as missões que têm como objetivo minimizar os impactos no sistema de saúde da capital amazonense”.
Falta de oxigênio causa tragédia em Manaus
Era madrugada de quinta-feira (14 de janeiro de 2020), quando a tragédia se iniciou em Manaus. Pacientes começaram a morrer asfixiados por falta de oxigênio nos hospitais públicos 28 de Agosto, Platão Araújo e Getúlio Vargas. Primeiro um, depois outro e, pela estimativa do Sindicato dos Médicos do Amazonas (Simeam), entre 20 a 40 amazonenses podem ter morrido por falta dessa assistência. O número não é preciso por falta de informações do governo do Amazonas, que não respondeu aos pedidos enviados pela reportagem sobre os dados.
O drama humanitário se estendeu para muito além do caos das UTIs Covid. Pela capital, familiares desesperados pelo desabastecimento de oxigênio decidiram ajudar seus parentes internados e os que estão em tratamento nas próprias casas, comprando cilindros de empresas particulares por até R$ 10 mil. De 1º a 13 de janeiro, 518 pessoas morreram no Amazonas devido ao novo coronavírus. Na terça-feira (13), a Prefeitura de Manaus informou número inédito de sepultamentos em cemitérios públicos: 94. A média normal de enterros, para mortes por várias causas, é de 34.
A falta de oxigênio nos hospitais de Manaus começou na noite de quarta-feira (13) e avançou pela madrugada, segundo o presidente do Simeam, Mário Vianna. “Falam em 20 a 40 pessoas que morreram na madrugada, mas não temos como precisar. Temos a impressão que as pessoas estão ocultando. Não temos serviço de verificação de óbitos. Não tem acesso à informação. Se eu ligar para a Fundação de Vigilância em Saúde e pedir, não vão me dar”, desabafou o médico. “O Brasil todo tem de pensar que se não houve uma internação [na saúde] e se não houver uma canalização de recursos para o Amazonas, o país pode vivenciar a situação de Manaus. Até porque temos mutações virais que podem se disseminar Brasil afora e tornar a situação mais grave”, completou.
No último domingo (10), o Japão detectou nova variante do coronavírus em quatro viajantes que estavam no Amazonas. Ela é da mesma cepa responsável pelo primeiro caso de reinfecção no estado e, ao que se sabe até agora, é original da região. Mutações identificadas na África do Sul e na Inglaterra estão sendo associadas a um aumento de transmissão.
Numa tentativa desesperada para conter o caos em Manaus, única das 62 cidades a contar com UTIs, o governador Wilson Lima (PSC) determinou que a Polícia Militar protegesse as portas das unidades de saúde. Teme-se a invasão de pacientes com o novo coronavírus. Nem a chuva forte desde as primeiras horas desta quinta-feira impediu que centenas de pessoas fossem às portas dos hospitais buscar por atendimento ou notícias de seus parentes mortos. Muitos foram hostilizados por policiais.
Desespero e toque de recolher
Em meio à crise humanitária sem precedentes em Manaus desde o início da pandemia, o governo do Amazonas adotou toque de recolher por 10 dias nos 62 municípios entre 19h e 6h. “São medidas que para alguns podem parecer duras, mas necessárias visando acima de tudo à proteção da vida das pessoas”, disse Wilson Lima.
Em dezembro, ele cedeu à pressão de empresários de Manaus que queriam reabrir o comércio da cidade, mesmo com avisos e alertas de especialistas para os riscos de a crise da covid-19 se agravar. O governo também se recusou a decretar o lockdown na primeira onda da pandemia. A medida só foi de fato adotada após decisão judicial de 2 de janeiro, que determinou a proibição de atividades não essenciais.
Desde o ano passado, autoridades sanitárias e epidemiológicas alertavam para o risco de Manaus enfrentar o atual colapso no sistema de saúde. A não adoção de medidas restritivas de distanciamento social por parte do governo é apontada como a principal causa. Grandes aglomerações foram registradas durante as festas de fim de ano.
Desta vez, só estará permitido o transporte de cargas essenciais (remédios e alimentos) e o trânsito de pessoas que integram os serviços públicos essenciais, como profissionais da saúde, segurança pública e jornalistas em serviço. As viagens intermunicipais – por via fluvial e terrestre – também estão proibidas.
A falta de insumos básicos é o que mais tem impactado no atendimento dos hospitais que sofrem com a superlotação. A falta de oxigênio é o maior fator de risco. Como um dos principais efeitos da covid-19 é a dificuldade respiratória, muitos pacientes necessitam de ajuda “externa” para garantir o fluxo normal de oxigênio no organismo. Já aqueles que estão nas UTIs dependem exclusivamente da respiração artificial. Sem ela, a morte é certa. Segundo a Secretaria de Saúde, o consumo diário de oxigênio saiu de 30 mil metros cúbicos entre março e maio do ano passado, para 76 mil metros cúbicos neste início de 2021 – aumento de 160%.
“Os governos e as Forças Armadas começaram a trabalhar para o apoio logístico e a entrega de oxigênio. Mas, tivemos um pico e um aumento da demanda acima do esperado”, disse o secretário estadual de Saúde, Marcellus Campelo. Aviões da FAB transportaram, essa semana, cilindros de oxigênio de Belém para Manaus.
Além de pôr em risco a vida de pacientes já em tratamento, a falta de oxigênio impede a abertura de novos leitos clínicos na capital do Amazonas, o que poderia desafogar os hospitais em lotação máxima, permitindo que mais pessoas recebam tratamento adequado. Já há estruturas prontas para atender a população em unidades como o Hospital Universitário Getúlio Vargas e o Hospital Nilton Lins, mas a ausência do suprimento impede o início das atividades. “Não conseguiram ativar leitos em virtude da contingência de oxigênio, que ocorre sem precedentes”, disse o secretário.
Em notificação extrajudicial, o governo do Amazonas requisitou oxigênio de 11 empresas do Distrito Industrial, entre elas a Yamaha e a Moto Honda. A notificação determina a “requisição administrativa de eventual estoque ou produção de oxigênio necessário à utilização nas estruturas da Rede Estadual de Saúde para o Enfrentamento e Combate à COVID -19”, diz o documento, assinado pelo secretário Campelo.
Diante da notícia da transferência dos pacientes para outros estados, o que se viu foi desinformação sobre a medida. “Ninguém sabe de nada, ninguém sabe quem vai ser transferido ou quem vai continuar. O que vejo é que tem muita gente emocionada”, relatou à Amazônia Real um familiar de paciente de Covid-19.
Na noite desta quinta-feira, um comboio de pelo menos 10 ambulâncias aguardava em frente do hospital para levar os pacientes até a aeronave para a transferência dos doentes. A angústia avançava, pois os horários inicialmente marcados para a viagem foram trocados. Por volta de 21h (hora local) , as ambulâncias ainda não haviam saído do hospital, o que acabou não acontecendo, já que a remoção foi adiada. “As pessoas não sabem se os doentes vão viajar sozinhos ou se os acompanhantes poderão ir”, disse uma pessoa em frente ao hospital.
Ação na Justiça pede medidas urgentes
Também nesta quinta-feira, o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Estado do Amazonas (MP/AM), o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Ministério Público de Contas (MPC), a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) apresentaram pedido de tutela de urgência à Justiça Federal para que assegurar o fornecimento regular de oxigênio para hospitais e demais unidades de saúde do Amazonas e atendimento aos pacientes diante da pandemia de covid-19, com base em notícias da imprensa. O pedido foi acatado na noite desta quinta pela juíza Jaiza Fraxe, da 1a Vara da Justiça Federal.
“O crescente número de casos registrados e o aumento no número de óbitos – cerca de 200 mortes em um único dia, muitas delas decorrentes de covid-19 – são sinais do momento crítico por que passa o estado”, diz nota do MPF. O órgão também apontou dificuldades de gestão e de operacionalização por parte das autoridades públicas para solucionar a crise de saúde em Manaus.
“Em reuniões realizadas com o Poder Executivo e órgãos de fiscalização em Manaus, verificou-se que somente aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) teriam condições de realizar o transporte do oxigênio líquido disponível em outros estados, pois o material é inflamável e volátil, incompatível com a estrutura de aviões comerciais. Na manhã de hoje (14), os órgãos foram informados que a aeronave destinada ao transporte do oxigênio apresentou problemas que necessitam de reparo e houve paralisação no fluxo emergencial de fornecimento do insumo para o estado. Por outro lado, a empresa White Martins, responsável pela maior parte do fornecimento de oxigênio, informou que não possui logística suficiente para atender à demanda atual”, relata o MPF.
O MPF afirma que a União não apresentou solução para contornar a situação, seja com o reparo da aeronave ou com a disponibilização de outra equivalente. “O Estado do Amazonas tem solicitado apoio de outros estados para o fornecimento do oxigênio. Contudo, esbarra na necessidade da devida assunção da responsabilidade pelo transporte, cabível à União. Por outro lado, enquanto não resolvida a situação, devem os entes federativos proverem formas de resguardar a vida dos pacientes, caso necessário com transferência para outros estados”, afirmam os procuradores, na ação cautelar.
O pedido inclui ainda a identificação, por parte da União, de cilindros de oxigênio gasoso em outros estados que possam ser transportados por via aérea e requisite o suficiente para abastecer as unidades da capital e do interior. A requisição deve ser feita também para oxigênio líquido em outros estados e na indústria, para transporte ao Amazonas. (Colaborou Elaíze Farias)
*Amazônia Real