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O que espanta a miséria é festa!

Autor do mais brasileiro dos aforismos, Beto Sem Braço, lendário sambista e compositor, será enredo do seu Império Serrano

ODS 10ODS 17ODS 4 • Publicada em 19 de setembro de 2024 - 23:04 • Atualizada em 24 de setembro de 2024 - 12:40

A vida nunca deu moleza ao carioca Laudeni Casemiro. Negro, nascido no andar de baixo da sociedade, toureava carências variadas – os boletos, sempre eles, em especial – como feirante, enfrentando a rotina com dificuldade adicional, devido à condição adquirida na infância, numa queda de cavalo: a perda do braço direito. Mas seguiu em frente, movido pelo talento de compositor. Sambista, o Laudeni.

Leu essa? A melhor cara do Brasil

Estava na batalha da música desde 1970, mas a recompensa nunca chegava. O Brasil jamais sorriu para a turma que faz as músicas, não seria diferente com ele. Até um dia, em 1993, quando Zeca Pagodinho gravou “Jiboia comeu o boi”, samba de Laudeni e João Quadrado; brotou dinheiro maior do que a média dos caraminguás de direito autoral.

Beto Sem Braço com Almir Guineto, um dos parceiros de suas muitas composições: bambas geniais. Reprodução do Instagram

O sambista não vacilou: subiu o Rato Molhado, favela da Zona Norte carioca, e patrocinou grande comemoração pelo feito. Porque “o que espanta a miséria é festa”, pontificou. “A gente não faz festa porque está feliz, mas porque está triste”, concluiu, produzindo peça única de filosofia, que decifra muito da potência cultural carioca. Laudeni subiu o morro, reuniu a galera, distribuiu cerveja e formulou o aforismo em sua pele famosa: Beto Sem Braço, compositor de sambas fundamentais e totem do Império Serrano.

Sim, a riqueza intelectual caudalosa do samba carioca produz em ritmo incessante peças da mais alta filosofia. Mergulhar na conexão entre miséria e festa permite viajar por diversas camadas que decifram o Rio de Janeiro e o Brasil. Para ficar na mais óbvia: o Carnaval e sua música nascem no bojo da diáspora africana, que sequestrou milhões de pessoas para transformá-las em escravizados do outro lado do Atlântico. Libertados por interesses econômicos e abandonados à própria sorte, tiveram como solitário caminho a miséria.

Diante da sociedade viciada na desigualdade e no acúmulo de capital, os negros descendentes de África deram seu jeito para espantar a tristeza – e construíram a melhor cara do Brasil. Batucaram, dançaram, compuseram, tocaram, cantaram samba, gênero musical inventado por eles. Depois, criaram as escolas de samba e estão há mais de um século oferecendo as melhores lições ao país.

A logo do enredo do Império Serrano para o Carnaval de 2025: homenagem ao autor de aforismo que decifra o caminho do povo negro para construir a melhor cara do Brasil. Divulgação

“O aforismo é absolutamente genial pelo poder de síntese”, exalta o sociólogo, professor e pesquisador de cultura popular Mauro Cordeiro. “Pessoas rotuladas como problema nacional, exemplos vivos do passado que o Estado brasileiro queria apagar, vítimas da legislação criminalizante dos corpos negros no espaço público produziram, em resposta, escola de samba”. E destaca o valor político das festas numa sociedade tão desigual. “Serve para derrubar a lógica capitalista e mostrar que há outras formas de lidar com a vida”.

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O professor ainda contesta a parolagem de alienação, pregada por setores especialmente carrancudos dos brasileiros. “Como se o cotidiano fosse regido pela racionalidade, sem a necessidade do encantamento. A alegria tem sua dimensão política, constrói sentido de pertencimento, identidade e articula várias maneiras de estar no mundo”, pondera.

Beto Sem Braço espalhou sua filosofia por sambas antológicos, como “Camarão que dorme a onda leva” e “Pisa como eu pisei”, compostos com Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Aluisio Machado, Almir Guineto e Martinho da Vila, entre outros parceiros. Também com Machado criou o magistral “Bumbum paticumbum prugurundum”, um dos mais aclamados sambas-enredo da história, do Império campeão do Carnaval de 1982.

No desfile de 2025, a verde e branco de Madureira fará merecida reverência ao compositor, que será o enredo da escola (desde já, um dos melhores do ano). O título, claro, é o aforismo. “A frase tem muitas camadas, ao enxergar a festa como processo de resposta e manifestação, maneira de responder a todo um sistema injusto”, analisa o carnavalesco Renato Esteves, que fará sua estreia na Coroa Imperial. “A filosofia nasce da vivência do autor, que consegue passar sentimentos muitas vezes complexos. Precisa ler e refletir muito para entender a profundidade”.

O carnavalesco acrescenta que o desfile terá ainda como função reconhecer os compositores de samba e partido alto, que sofrem teimoso processo de apagamento. “A gente não presta atenção nas canções na perspectiva de quem as cria”, protesta.

Agora, um dos maiores bambas de todos ganhará a homenagem devida, no altar das festas que espantam qualquer miséria.

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