A história do futebol coleciona partidas que ganharam epítetos por ocorrências extraordinárias – Milagre de Berna, Jogo da Mão de Deus, do Ladrilheiro, do Chororô, do Gol de Barriga, Maracanazo. Um deles tem título especialmente sucinto, que dispensa apresentações: o 7 a 1. Semifinal de Copa do Mundo (de 2014), o duelo da maior campeã (e anfitriã) contra a favorita ao título terminou com o massacrante placar-emblema para os visitantes.
Leu essa? Por uma seleção diferente
Fez 10 anos essa semana – e o acima assinado estava lá, na atônita plateia do Mineirão, uma das milhares de testemunhas oculares do atropelo da espetacular seleção da Alemanha sobre o frágil time do Brasil. Meninas e meninos, moças e rapazes, foi, para usar termo de nossos dias, surreal. Escalado pel’O Globo para o relato principal do jogo – a crônica, no jargão técnico –, descrevi assim os gols:
“Aos 10 minutos, Mueller cabeceou sozinho: 1 a 0; aos 22, os visitantes tabelaram área do Brasil adentro, até Klose empurrar para o gol (e, cereja da torta alemã, superar Ronaldo como o maior artilheiro de todas as Copas): 2 a 0; aos 24, de Özil para Lahm, para Kroos: 3 a 0; aos 25, Kroos roubou de Fernandinho, tabelou com Khedira e marcou: 4 a 0; aos 28, Özil passou a Khedira: 5 a 0. No segundo tempo, enquanto a pequena torcida visitante cantava ‘Rio de Janeiro, ôôôô’, os alemães piedosamente diminuíram o ritmo. Ainda fizeram mais dois, com Schuerrle, e permitiram-se levar um de Oscar.”
O texto termina com o devido réquiem a Barbosa (1921-2000), o goleiro perseguido pelos racistas como vilão na Copa de 1950 (fracasso caseiro anterior), que afinal poderia descansar em paz. A partir daquele 8 de julho, o futebol brasileiro teria “vexame maior para velar”.
A partir da derrota, imaginou-se que inadiáveis revisionismos e autocríticas conduziriam o setor – cartolas, técnicos, gestores, atletas, clubes, federações –, enfim, na direção de alguma evolução. Aconteceu nada. O futebol mantém-se aferrado a antigas mazelas e, subjugado por estruturas de poder conservador, perde relevância planetária.
Ah, mas é só esporte, minimizará um mais equivocado. O #Colabora cheio de crise climática para se ocupar e o colunista tratando de bola. Não. O futebol está entre os itens formadores da identidade brasileira e merece ser tratado com mais cuidado e carinho do que a eterna bandalheira desses trópicos.
A CBF será sempre o exemplo mais educativo deste eterno 7 a 1. “Dona” da seleção brasileira, era comandada, à época, pelo advogado paulista José Maria Marin (também presidente do Comitê Organizador do Mundial brazuca) que, no ano seguinte, acabou banido do futebol por corrupção. Condenado em seis processos, ficou preso até 2020, quando foi solto por razões humanitárias.
Seu sucessor, Marco Polo Del Nero, sentou-se na cadeira de mandatário de abril de 2015 a dezembro de 2017, até ser também banido. Para substituí-lo, um alívio cômico: o coronel Antônio Carlos Nunes, famoso por votar errado na escolha da sede do Mundial de 2026 – sul-americano, optou pelo africano Marrocos contra a candidatura (vencedora) EUA/Canadá/México.
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Veja o que já enviamosO milico-cartola deu lugar, em 2019, a Rogério Caboclo, paulista que chegou cavalgando devaneios de modernização e eficiência – até ser apanhado em flagrante delito de assédio moral e, especialmente, sexual contra funcionária da própria CBF. O dirigente caiu por decisão do Conselho de Ética (sim, tem isso lá) e, para substituí-lo, assumiu interinamente Ednaldo Rodrigues, eleito definitivamente em 2022.
Ou seja: todos os mandachuvas recentes do futebol brasileiro caíram por chafurdar no lamaçal boleiro (inclusive o pai de todos, Ricardo Teixeira, antecessor de Marin, também banido). Mas ética e honestidade estão longe de ser os encantos da cartolagem por aqui. Assim, a vida pós-7 a 1 segue do mesmo jeito de sempre.
O país pentacampeão do mundo mantém-se refém do extrativismo desenfreado de jovens jogadores, vendidos adolescentes para cantos mais prósperos da Terra, na invencível desigualdade econômica que não incomoda os chefões da bola. Mantém calendário insano, que massacra os jogadores. Permite que seus campeonatos ocorram em gramados inaceitáveis. Clubes descumprem contratos e outros compromissos, num ambiente de total insegurança jurídica.
A violência das torcidas organizadas grassa impune – em todo clássico de grande rivalidade, o pau quebra pelas cidades, deixando mortos e feridos, diante de impotentes forças de segurança. O racismo também continua presente em competições nacionais e continentais – ao menos, sem a intensidade brutal de lugares como a Espanha. Frequentar estádios, assim, requer coragem.
O superfaturamento na construção das arenas Padrão Fifa ficou, previsivelmente, sem responsáveis nem condenados. Sobrou a elitização das plateias futebolísticas que, na efeméride do 7 a 1, conheceu novo paroxismo: na recém construída Arena MRV (propriedade dos empreiteiros que se apossaram no Atlético-MG), num canto remoto de Belo Horizonte, o estacionamento custa R$ 150. O jogo-identidade dos brasileiros começa a escapar da classe média e para virar programa de ricos à vera.
Em campo, ainda fabricamos craques – um deles, Vini Jr, é favorito a melhor do mundo. Mas o país ainda está refém do maior talento revelado por aqui em muito tempo, Neymar, que, na última de uma coleção de escolhas equivocadas, se exilou no futebol saudita. Para piorar, o porvir do prodígio surgido em Santos virou incógnita: aos 32 anos, recupera-se de grave contusão sofrida em amistoso da seleção, em outubro de 2023, quando rompeu os ligamentos do joelho esquerdo. No outono da trajetória futebolística, ninguém sabe como voltará.
A seleção ainda carrega o peso daquelas sete bolas no seu gol. Nas Copas, caiu nas quartas-de-final em 2018 (Rússia) e 2022 (Catar), para Bélgica e Croácia, países sem tradição entre os grandes do futebol. Semana passada, perdeu nos pênaltis para o Uruguai na Copa América. Na edição anterior do torneio continental, em 2021, sucumbiu à Argentina, no Maracanã.
O eterno “fica do mesmo jeito” funcionou como muleta para quem esteve em campo no 7 a 1. As carreiras daqueles profissionais seguiram sem serem tisnadas pelo placar extremo. O técnico Luiz Felipe Scolari trabalhou no Palmeiras (onde foi campeão em 2018), e nos Atléticos de Minas e do Paraná; Fred, o inexistente centroavante daquela seleção, acabou artilheiro do Campeonato Brasileiro no mesmo ano da Copa; David Luiz, Marcelo, Hulk, Oscar, Bernard, Fernandinho e outros humilhados na ensolarada tarde de inverno no Mineirão continuaram em clubes importantes pelo mundo.
(Outra grave derrota – não esportiva – se cristalizou nos anos seguintes: a camisa canarinho, mais célebre uniforme futebolístico de todos os tempos, foi sequestrada pela extrema-direita, para virar farda de intolerantes, autoritários, inimigos da democracia, protagonistas do show de horrores da política brasileira. Muitos dos criminosos da depredação do 8 de Janeiro em Brasília vestiam o traje da seleção. Lástima suprema – da qual, reconheça-se, o futebol não tem culpa.)
Mas no esporte, amarelada pela ação do tempo, a contundência do 7 a 1 virou irrelevância na teimosa monotonia do futebol pentacampeão. Jogo jogado – sempre do mesmo jeito.