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A viagem de Neymar, o Dorian Gray da bola, na endinheirada irrelevância do deserto

Craque brasileiro vai jogar na Arábia Saudita, ignorando crimes e pecados (inclusive ambientais) da teocracia que tenta se lavar pelo futebol

ODS 12ODS 15 • Publicada em 17 de agosto de 2023 - 17:18 • Atualizada em 22 de agosto de 2023 - 09:58

Neymar, no dia da assinatura do contrato com o Al Hilal: sportswashing. Foto divulgação
Neymar, no dia da assinatura do contrato com o Al Hilal: sportswashing. Foto divulgação

E o maior talento surgido no futebol brasileiro nas últimas três décadas viverá em endinheirada irrelevância o outono de sua carreira. O artificial campeonato da Arábia Saudita de futebol é o novo endereço futebolístico de Neymar, que vestirá, nas próximas duas temporadas, a camisa azul e branca do Al Hilal. O camisa 10 da seleção pentacampeã do mundo embarca no projeto da teocracia do país de usar o esporte para lavar a imagem planetária de um prontuário infinito de violências.

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Aferrado à imagem de menino que faz dele, aos 31 anos, uma espécie de Dorian Gray (da obra de Oscar Wilde) boleiro, Neymar se foi para a periferia futebolística, em mais um capítulo amargo para os admiradores de sua técnica exuberante. Sem mercado no palco principal – as grandes ligas europeias –, tentará novamente reconquistar o prestígio que suas escolhas teimam em arranhar.

A frustração que acompanha o craque na maior parte de sua trajetória não tem a ver exatamente com resultados esportivos. Está mais ligado ao “não-cidadão” que escolheu ser, subjugado pela patológica ascendência do pai-patrão-empresário. Como vive nos dias em que imagem significa (quase) tudo, carrega passivo pesado para se firmar no andar de cima da bola.

Mas Neymar não está desalinhado com seus pares. O planeta futebol se importa menos do que deveria com o projeto saudita. Ao se abrir para o dinheiro inesgotável dos petrodólares, ratifica a doutrina de que, em campo e fora dele, a ética é não ter ética. Todos os seus personagens, de cartolas a jogadores, de técnicos a torcedores, tentam se manter numa dimensão paralela, onde não vigoram valores e preceitos presentes nos outros setores da vida. Uma lástima.

A escolha significa avalizar um dos regimes políticos mais nefastos sobre a Terra. O Al Hilal, cujo escudo Neymar carregará no peito, pertence ao fundo soberano saudita – propriedade, na prática, do ditador Mohammad bin Salman, que ordenou o esquartejamento do jornalista dissidente Jamal Khashoggi, entre outros crimes. O regime comandando pelo príncipe oprime violentamente as mulheres e proíbe igrejas e sinagogas. Além disso, ele manteve a própria mãe em cativeiro, sequestrou o premiê do Líbano e, segundo o Human Rights Watch, cometeu crimes contra a humanidade no Iêmen.

É com essa figura que o camisa 10 da seleção brasileira foi se meter. Mesmo sem a folha corrida do mandatário, a Arábia Saudita não presta, porque acumula dinheiro – e poder – para aventuras como a esportiva a partir de uma atividade venenosa para o planeta. Segundo maior produtor de petróleo do mundo (atrás dos EUA), ignora a crise climática, e atua decisivamente para piorar o cenário na Terra.

Consciência ambiental também não está entre os pendores da nova estrela do Sauditão. Neymar recebeu multa de R$ 16 milhões devido à construção de um lago artificial no Condomínio AeroRural, em Mangaratiba, onde possui mansão cinematográfica. Para realizar a obra, houve remoção da vegetação, manejo clandestino de areia, pedras e até a utilização da água de um rio. O projeto nasceu de parceria com a Genesis Experience, do empresário Ricardo Caporossi, especialista em paisagismo e lagos artificiais. Faria parte de um reality show que propõe o desafio de uma “super mudança” no ambiente em 10 dias – tudo, claro, com maciça exibição nas redes sociais. Por que Neymar se mete nessas furadas é a pergunta há muitos anos sem resposta.

Neymar, no lago que construiu ilegalmente no condomínio onde tem casa em Mangaratiba: multa de R$ 16 milhões. Reprodução Instagram

O jogador ainda debochou da decisão judicial via Instagram (212 milhões de seguidores), com imagens se banhando no lago interditado. Agora, recorre da sentença, para driblar a multa. De qualquer jeito, a punição milionária é trocado para ele, que, pelo contrato com o Al Hilal, virou o terceiro jogador mais bem pago do mundo, atrás apenas de Benzema e Cristiano Ronaldo, adversários no novo emprego. Por ano, o brasileiro embolsará 160 milhões de euros – R$ 860 milhões, ou R$ 71,6 milhões mensais, ou R$ 2,38 milhões por dia.

Dos 10 maiores salários no futebol atual, só Mbappé (72 milhões de euros no Paris Saint-Germain) e Messi (50 milhões de euros no Inter Miami) não estão no deserto. Nem por isso, deixam de participar da lavagem de imagem dos países totalitários da região – o francês é o protagonista do time bancado pelo fundo soberano do Catar e o argentino desfila sem constrangimento como embaixador esportivo da Arábia Saudita. Não tem mocinho.

Sportswashing é o nome do jogo que levou à contratação de astros como Cristiano Ronaldo, Benzema (francês, ex-Real Madrid), Mané (senegalês, ex-Bayern e Liverpool), Roberto Firmino (brasileiro, ex-Liverpool), Mahrez (argelino, ex-Manchester City) e Mendy (senegalês, ex-Chelsea) Estão sendo construídos estádios e centros de treinamento, além de um sofisticado plano de marketing para vender a Arábia Saudita como a nova Pasárgada da bola.

Nesse enredo, o eterno Menino Ney busca, mais uma vez, sua redenção. Só a impressionante capacidade do futebol de produzir surpresas e reviravoltas joga a favor dele.

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