Voluntários da ONG Borders of Love, criada para ajudar refugiados da guerra civil na Síria, os brasileiros Gabriel Nathan da Silva e Mayara Alfradique vivem na Turquia há mais de 2 anos e tiveram que mudar o foco de sua atuação humanitária após o terremoto de de magnitude 7,8, que matou mais de 50 mil pessoas nos dois países – Turquia e Síria – no dia 6 de fevereiro. Deslocados para o sudoeste do país, epicentro dos tremores de terra, eles passaram dias no socorro aos sobreviventes.
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Em Istambul, onde mora, Mayara dá aulas de inglês para os refugiados sírios – durante 11 anos de guerra civil, quase seis milhões de pessoas já deixaram o país, 3,7 milhões em direção à Turquia, segunda dados da Acnur, a agência da ONU para refugiados. “A Turquia é um país estratégico, está perto de vários locais que precisam de apoio”, conta. Logo depois do terremoto, a professora uniu-se a um grupo de voluntários da ONG brasileira e deixou a capital de madrugada – o marido, Cristian, ficou em casa: ele trabalha em um hospital da cidade. Foram 14 horas de viagem de van até Hatay, cidade no sudoeste da Turquia, na área do epicentro do terremoto.
Nos dias mais dramáticos após a tragédia, a solidariedade se tornou a ação mais vista no país, segundo Mayara. A professora conta que mesmo pessoas de províncias não atingidas têm se mobilizado e centenas de caminhões com alimentos e água chegam de diferentes regiões do país. “A cidade de Hatay está bem destruída e, infelizmente alguns prédios simplesmente viraram destroços, pedregulhos. Outros prédios estão tortos, inclinados para o lado, com risco de queda”, relata.
O trabalho de Mayara no país agora tem sido entregar comida às famílias que perderam tudo e levantar recursos para conseguir ampliar as ações da ONG. Segundo a brasileira, os resgates demoraram em razão da indisponibilidade de equipes, além da temperatura fria do inverno europeu. Além disso, ela pontua que tem dedicado tempo também para conversar com os moradores. “Nós paramos e conversamos porque, muitas vezes, eles precisam apenas de um abraço e de serem ouvidos. Temos esse tempo de qualidade também com as pessoas. Nós já ouvimos bastante histórias. Às vezes, a gente abraça e as pessoas começam a chorar conosco porque elas precisam disso”, conta a professora, que é de Macaé (RJ).
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Veja o que já enviamosGabriel Nathan da Silva, de 25 anos, se mudou para a Turquia em 2020: com a esposa Agata, deixou Canela, na serra gaúcha, onde trabalhava no comércio com o pai, para apoiar refugiados na ONG Borders of Love. Enquanto estuda turco, Gabriel recebe refugiados afegãos e sírios em Istambul e os ajuda a preencher os formulários necessários para regularizar a situação no país.
Com o terremoto, ele fez o mesmo caminho de Mayara, viajando mais de 800 quilômetros até Hatay. “Meu primeiro sentimento foi de tristeza, de não conseguir acreditar no que aquela cidade estava passando. Do jeito que estava, parecia cena de filme. Era um prédio caído por um lado, parecendo que aqueles prédios foram quebrados por um uma mão gigante, não parecia que tinha sido um terremoto”, conta Gabriel. “Nós vimos pessoas muito abatidas por perder seus bens, perder seus entes queridos. O clima geral na cidade é de muita tristeza. Quando havia algum sinal de vida entre os escombros, aparecia a chama de alegria, a esperança a cada sinal de vida”, relata.
O jovem brasileiro conta sobre um episódio ocorrido enquanto distribuía comida para os sobreviventes em um dia. “Um rapaz veio e perguntou de onde a gente era, porque que a gente estava fazendo aquilo por eles. Foi o momento em que se abriu. Ele perdeu a namorada, a mãe da namorada e a irmã da namorada: tinha acabado de descobrir que elas foram encontradas mortas. Ele disse que não sabia o que faria da vida dele, que teria que voltar para cidade dos pais para ver o que aconteceria. Ele realmente perdeu o chão, ele perdeu tudo”, recorda. “Os relatos que a gente ouvia eram, assim, tenebrosos. Muitas pessoas perderam totalmente suas famílias – pais ficaram totalmente sozinhos no mundo, filhos ficaram totalmente sozinhos no mundo. Pessoas sem rumo, sem saber o que fazer, sem saber para onde ir, porque perderam tudo”.
Mayara lembra do encontro com uma mulher recém-casada que perdera o marido e estava acampada com a mãe. “Logo em seguida, ela soube que o prédio onde tinha feito mais amizades em Hatay tinha desabado. O que a gente mais ouvia eram histórias assim: de pessoas que infelizmente perderam tudo: a casa, a família, os amigos”, afirma a professora.
Ela também recorda que sua equipe de voluntários chegou a uma vila, bem distante do centro, onde nenhuma ajuda havia chegado ainda. “Os próprios moradores contaram que tiveram que fazer a busca das pessoas soterradas sozinhas. Nós nos programamos e levamos mais alimentação bem como kits de higiene, tendas e também cobertores para esses sobreviventes”, conta Mayara.
A reação dos moradores ao receberem apoio após a tragédia emocionou os voluntários brasileiros. “As pessoas choravam, elas beijavam as nossas mãos. Em algumas vilas da Turquia, nós fomos os primeiros a chegar para o socorro. O olhar de gratidão das pessoas foi uma coisa marcante. A gente pode pensar que está indo só levar água, comida e algo mais, mas, para aquelas pessoas, significa que elas vão ter mais um dia para sobreviver. Fomos acolhidos por todos os todas as pessoas que a gente encontrou, que a gente ajudou. No pouco que sobrou para eles, queriam nos retribuir, preparando um café, um chá”, contou Gabriel.
Mayara lembra como era bonito ver a solidariedade entre os sobreviventes e a gratidão dos moradores. “Uma vez, nós preparamos uma mesa com café, chá, biscoito, bolo. Aí, uma mulher fez questão de ir apanhar tangerinas de um pé que tinha no quintal da sua casa. E outra trouxe sementes de girassol, que os turcos gostam muito”.
Construções irregulares
Na segunda-feira (20/02), mais dois terremotos – de magnitude 6,4 e 5,8 – atingiram o país, deixando, pelo menos seis pessoas mortas e mais de 300 feridas, de acordo com a Afad, Autoridade de Gestão de Emergências e Desastres turca. O epicentro foi exatamente a área de Hatay, onde atuaram os voluntários brasileiros que agora estão de volta a Istambul. Na segunda-feira (27), novo terremoto, de magnitude 5,2, atingiu a Turquia desta vez no leste do país, deixando uma pessoa morta e causando o desabamento de mais dezenas de prédios.
Agências internacionais sinalizam que a arquitetura antiga dos prédios e casas colaborou para um cenário catastrófico, com centenas de habitações destruídas. Para o professor Antonio Guerra, titular do Departamento de Geografia da UFRJ e Pesquisador 1A do CNPq, o terremoto não podia ser evitado, mas os impactos poderiam ser minimizados se houvesse planejamento. “É quase que impossível evitar um terremoto, mas pode-se evitar, ou diminuir as consequências catastróficas, como as que vimos na Turquia e na Síria”, disse.
O professor afirma que o governo turco “fez vista grossa para as construções irregulares” dos últimos 20 anos. “Foram criadas regras e legislações para que as construções, em especial de prédios, seguissem procedimentos para resistir ao choque das placas tectônicas, que causam os terremotos, ou pelo menos para evitar a derrubada total desses prédios”, ressalta o especialista.
Em relação ao tempo para o país se reconstruir, o professor afirma que pode levar anos, caso não seja ajudado efetivamente pela comunidade internacional. “Se houver ajuda internacional, pode levar poucos anos, mas, sem essa ajuda, é provável que leve algumas décadas. O grau de destruição é muito grande. São casas, prédios, escolas, indústrias, comércio, estradas, ruas, rede de esgoto, rede de água potável, toda infraestrutura que foi quase que totalmente destruída”, destaca.