Vítimas do coronavírus são alvos de ódio digital

Efeito colateral da pandemia: preconceito, fake news e ódio virtual (Arte: Agência Pública)

Pessoas doentes ou com suspeita de covid-19 tem informações pessoais publicadas nas redes sociais e sofrem até ameaças de morte

Por Agência Pública | ODS 16ODS 3 • Publicada em 1 de abril de 2020 - 19:41 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 22:27

Efeito colateral da pandemia: preconceito, fake news e ódio virtual (Arte: Agência Pública)

Ethel Rudnitzki e Laura Scofield**

No dia 7 de março, quando a pandemia do coronavírus tinha acabado de chegar ao Brasil, Jeferson* foi a um casamento na Bahia, estado que havia acabado de confirmar seu segundo caso de coronavírus. Quando voltou para sua cidade, no interior de São Paulo, ficou sabendo que três pessoas que foram no evento estavam infectadas com o vírus. Imediatamente, fez o exame para covid-19 e se colocou em isolamento, interrompendo suas atividades de trabalho. Além disso, também publicou em suas redes sociais um vídeo com esclarecimentos sobre seu estado de saúde para informar a família e os amigos.

A resposta foi virulenta e imprevisível. Seu vídeo circulou em grupos de Whatsapp e Facebook, acompanhado de acusações de que estava espalhando o vírus pela cidade de 115 mil habitantes e desrespeitando a quarentena. “Surgiu muita coisa, pessoas falando que me viam na rua, e era mentira. Inventaram que eu estava na UTI, entubado, muita falação… Eu fiz tudo certinho, mas realmente teve muita invenção”, conta. A notícia do jornal local sobre o caso recebeu de 300 comentários no Facebook, entre eles: “Manda esse bosta pra PQP”; “É um total irresponsável”; “O doutor playboyzinho vai no casamento na casa do caralho e vem trazendo o vírus.” Enquanto ainda estava em isolamento, ele recebeu uma ligação no interfone de seu apartamento de um vizinho, que não se identificou. “Ah, se eu te ver no corredor… Fica esperto!”, dizia a ligação.

Alguns dias depois, saiu o resultado negativo do exame. “É um babaca que saiu anunciando que estava infectado e deixando a população assustada”; “Queria fama”: os ataques continuaram. “Foi um alívio quando saiu o resultado negativo. Mas continua tendo muita conversa”, contou à Agência Pública.

Jeferson é apenas uma das pessoas que teve suspeita de infecção ou ficou doente e sofreu ataques nas redes sociais. A Agência Pública conversou com outras quatro vítimas, que receberam desde xingamentos até ameaças de morte em grupos de Whatsapp e postagens em redes sociais. Os entrevistados relatam que grande parte dos ataques culpa eles pelo vírus através de falsas acusações e desinformação.

Responsabilização e estigma

Assim que Carlos* teve diagnóstico confirmado para coronavírus, começaram os ataques. Carlos nasceu em uma cidade do interior da Bahia e estava por lá passando férias com sua mãe e esposa. Havia recentemente voltado de uma viagem a trabalho nos Estados Unidos e, quando começou a sentir os sintomas da doença causada pelo coronavírus, procurou um médico. Fez o exame e, quatro dias depois, recebeu o resultado: era o primeiro e único caso de covid-19 em sua cidade.

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Eu poderia estar morta, ele poderia estar morto, minha nora e meu neto poderiam estar mortos. As pessoas não pensaram isso, elas nos viram como os vilões da história, os transmissores do vírus

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A notícia se espalhou rápido. Assim que soube do resultado, a mãe de Carlos enviou um áudio a conhecidos via Whatsapp. Sua intenção era, além de alertar as pessoas, tranquilizar a todos ao dizer que a família estava isolada, seguindo os protocolos médicos. Mas a situação se tornou um caso de polícia.

Além de comentários maldosos pela internet, surgiu e se disseminou no Whatsapp um áudio que citava diretamente o nome de Carlos e pedia que aqueles que soubessem seu endereço o agredissem fisicamente. O áudio exortava o seu linchamento, o que é crime segundo o Código Penal. “Esse Carlos que chegou dos Estados Unidos é a colmeia do vírus. Enquanto a população não linchar ele e jogar ele para debaixo de sete palmos de terra, ele vai espalhar o vírus”, dizia.

Assustada, a família teve que buscar proteção da polícia. Além de vigiar o bairro onde mora, a PM está mobilizando suas redes para identificar o autor do áudio. “É como se a gente fosse responsável por contaminar a cidade inteira”, diz a mãe, que testou negativo para o vírus. “Todos os ataques se resumem a falar que a gente tinha consciência de que a gente tinha o vírus e a gente saiu para propagar”, concorda Carlos. Ele teme que muitas pessoas vão continuar acreditando nas notícias falsas. “Espalhou de um jeito que as mentiras passaram a ser verdade”, diz.

A mãe desabafa que a angústia de ter que lidar com os comentários, ameaças e boatos relacionados à sua família foi maior do que a de ter o filho contaminado pelo vírus. “Eu poderia estar morta, ele poderia estar morto, minha nora e meu neto poderiam estar mortos. As pessoas não pensaram isso, elas nos viram como os vilões da história, os transmissores do vírus”, afirma.

Redes nada cordiais

O mesmo aconteceu com Gabriel Azevedo, vereador de Belo Horizonte. Como forma de prevenção, o político e sua equipe começaram medidas de distanciamento social no dia 12 de março. No dia 14, o vereador resolveu fazer o teste por precaução. Azevedo recebeu seu teste positivo para o novo coronavírus no dia 18 de março e, como figura pública, resolveu compartilhar o resultado nas redes sociais.

Imediatamente, uma chuva de comentários negativos surgiram em suas postagens. Muitos deles acusavam o vereador de querer contaminar outras pessoas. “Ser acusado de querer contaminar é uma coisa absurda”, relatou. Foram tantos os ataques que um médico orientou que ele se afastasse das redes sociais.

Gabriel Azevedo conta que desde que publicou o resultado positivo de seu exame para coronavírus tem recebido diversos relatos de pessoas que também foram estigmatizadas por estarem com a doença. “As pessoas não tiveram empatia e solidariedade. Ficaram imaginando que alguém quer contrair o vírus”, lamenta.

“Não é a primeira doença que está sendo estigmatizada”, explica a jornalista Alana Rizzo, fundadora da organização Redes Cordiais, não-violenta nas redes sociais através de influenciadores digitais parceiros. Rizzo está acompanhando casos de ataques virtuais no contexto do coronavírus e é taxativa ao dizer que os piores ataques são aqueles que buscam responsabilizar as pessoas contaminadas. Isso acaba “estigmatizando, afastando e desumanizando” quem já está fragilizado por ter que lidar com a doença.

[g1_quote author_name=”Célia*” author_description=”Moradora de Goiás que teve a casa apedrejada” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

As pessoas estão soltando muita coisa, muita mentira, muitas coisas falsas, e estão nos deixando a um passo de um colapso nervoso, de um surto

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Outro tipo de ataque comum tem sido a disseminação de boatos e mentiras sobre as pessoas contaminadas – as chamadas “fake news”. Isso aconteceu com Eduardo*, morador de uma cidade no sudeste de Minas Gerais. Quando voltou de uma viagem à França com a família, ele cumpriu rigorosamente o isolamento de 14 dias. Ainda assim, foi acusado de estar rompendo a quarentena e teve fotos de sua viagem e seu endereço espalhados pelas redes.

Postagens diziam que eles haviam voltado da Itália e transmitindo o vírus. “A gente sente que tem a vida invadida, é pior do que um roubo”, relata Eduardo, que também teve que acionar a polícia.

A disseminação de boatos e mentiras também aconteceu com Carlos e com o vereador Gabriel Azevedo. Ambos foram acusados de desrespeitar o isolamento social, com perfis afirmando que eles haviam sido visto em diversos eventos. “De acordo com tudo que eu fui recebendo, no final de semana eu devo ter ido a 100 eventos, quando eu estava, no sábado, lendo um livro em casa, e no domingo à noite, trancado em casa”, ironiza o vereador, que desmentiu os boatos em suas redes sociais.

Colapso nervoso

Apesar de terem tido início nas redes sociais, alguns dos ataques às vítimas do coronavírus tomaram dimensões físicas, segundo apurou a Agência Pública. Em Águas Lindas de Goiás, Célia* teve a casa apedrejada após um áudio de Whatsapp espalhar a informação de que ela estaria com suspeita de coronavírus e listar seu endereço. “Ela deve ter contaminado ali em volta tudinho”, dizia, no áudio, uma mulher que se identificava como enfermeira do hospital.

Célia está grávida de 4 meses e foi para o hospital em uma cidade vizinha no dia 18 de março com sintomas de gripe e falta de ar. Diagnosticada com pneumonia, ela fez o exame para coronavírus e foi internada para tratamento. No domingo, dia 22, sua casa foi apedrejada. “Ela me ligou desesperada. Em pânico mesmo, com medo do pessoal invadir a casa, bater nos seus filhos”, conta o irmão da vítima.

Agora, a polícia investiga quem está por trás do áudio e do apedrejamento. Na segunda-feira, Célia recebeu o resultado de seu exame: negativo. Seu irmão também testou negativo. “As pessoas estão soltando muita coisa, muita mentira, muitas coisas falsas, e estão nos deixando a um passo de um colapso nervoso, de um surto”, lamenta ele.

Isolamento social e virtual

Muitas vítimas também preferiram ficar afastadas das redes para evitar novos ataques cuidar da saúde. Depois dos ataques que sofreu, Jeferson recomenda que as pessoas não compartilhem nas redes sociais caso estejam com suspeita de vírus, “porque tem muita gente que mistura as coisas, por desinformação.”

Alana Rizzo, do Redes Cordiais, lembra que é importante cuidar da privacidade e da confidencialidade nesses casos. “Exponha só o que é a sua informação. A informação médica é extremamente confidencial e tem que ser”, ressalta.

Para quem quiser compartilhar suas informações, o Redes Cordiais criou um guia com orientações para as pessoas postarem sobre o coronavírus nas redes sociais, sem reforçar o estigma da doença. Entre as dicas estão evitar o uso de adjetivos, como “vírus mortal”, para não espalhar o pânico, e compartilhar suas experiências individuais, mas sempre embasado em informações validadas e oficiais.

*Os nomes dos entrevistados foram trocados para preservar a identidade das fontes.

**Da Agência Pública

Agência Pública

Fundada em 2011 por repórteres mulheres, a Pública é a primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil. Tem como focos a administração pública, incluindo todos os níveis de governo e as casas legislativas; os impactos sociais e ambientais de empresas, suas práticas de corrupção e de antitransparência; o Poder Judiciário, sua eficácia, transparência e equidade; e a violência contra populações vulneráveis na cidade e no campo.

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