A obtusa guerra às drogas, nome-fantasia do banho de sangue cotidiano que massacra brasileiros negros e periféricos há várias gerações, não distingue ideologias, nem trajetórias políticas. Iguala governadores progressistas e conservadores, na mesma ciranda de barbárie, em nome de resultado nenhum. O país se mantém nesse atoleiro há décadas, e só acumula derrotas.
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Nos últimos dias, pelo menos 44 corpos se somaram à montanha de cadáveres decorrente da sanha assassina dos homens da lei. Chacinas realizadas por policiais militares assolaram comunidades populares no Rio, no Guarujá (SP) e em várias cidades da Bahia. Os algozes sequer se escondem – ao contrário, desfilam a brutalidade com orgulho, internet afora.
Cúmplices da tropa furiosa, os governantes só variam na intensidade do aval. Os de esquerda são mais contidos, enquanto a turma da direita solta fogos para a mortandade. Mas todos são irmãos na aposta que deixa populações inteiras na mira dos meganhas.
Governada pelo PT há cinco legislaturas (desde 2007, há mais de 16 anos), a Bahia virou o exemplo mais escandaloso da mazela. Em quatro dias, na virada do mês, 19 pessoas morreram em “confrontos”, como a narrativa policial rotula as ocorrências que só deixam corpos de um lado da querela. Quase uma semana depois, o governador petista Jerônimo Rodrigues se esconde no silêncio sobre o episódio.
Podia ser pior. Em 2015, Rui Costa, antecessor do atual mandatário baiano, socorreu-se de metáfora futebolística para comentar outra chacina policial, no Cabula, em Salvador, que deixou uma dúzia de mortos. “É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol”, comparou, sem constrangimento. “Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão. Se o gol for perdido, o artilheiro vai ser condenado, porque se tivesse chutado daquele jeito ou jogado daquele outro, a bola teria entrado”, concluiu o hoje chefe da Casa Civil de Lula, sobre o massacre, que segue impune, sem sequer ter tido julgamento.
Rui Costa, Jerônimo e o primeiro da dinastia, Jaques Wagner – líder do governo no Senado e parceiro histórico de Lula –, construíram façanha macabra: a polícia da Bahia é a mais letal do Brasil, desbancando o eterno Rio de Janeiro do topo da lista. Contabiliza o recém-publicado Anuário Brasileiro de Segurança Pública que as polícias do estado exterminaram 1.464 pessoas em intervenções oficiais ano passado, ou 22,7% das 6.430 mortes no país – mais de um em cada cinco cadáveres nacionais. Em 2015, quando o PT chegou ao poder (destronando o grupo de Antonio Carlos Magalhães), os óbitos somaram 354. A espiral, em sete anos, atinge 313%.
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Veja o que já enviamosO prontuário caberia à perfeição em Tarcísio de Freitas (Republicanos), o bolsonarista governador de São Paulo. Também esta semana, o Brasil horrorizou-se diante do massacre promovido por policiais de diversos batalhões, liderados pela Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), tropa tradicionalmente sanguinária da polícia paulista, em Guarujá. A partir da morte de um soldado, seus colegas balearam quem lhes cruzou o caminho, matando 14 pessoas – uma óbvia operação de vingança.
Aqui, a realidade imita a ficção. No icônico e fascista “Tropa de elite”, o Bope, tropa de elite da PM fluminense, invade a favela “para deixar corpo no chão” (está no filme, basta assistir) e dar o troco pelo martírio de um dos seus – jamais para prover segurança àquela população. A versão “da garoa” dos brucutus do Rio agiu exatamente assim. “Para conhecimento atualizando (sic) o placar até o momento 12 x 1. Mais um vagabundo para a pedra, QRX rede rádio Rota”, postou, festivo, o perfil @soldadoraniere, no Instagram.
(O conteúdo produzido por policiais e influencers da segurança nas redes sociais e em podcasts é manancial inesgotável de violência e desrespeito à lei. Basta pesquisar para se ter a dimensão do buraco em que o Brasil está metido. Serviria também para uma boa faxina nas instituições do setor. Se alguém estivesse interessado nisso, claro.)
O massacre do Guarujá impressiona pela transparência das intenções. Vingança pura, simples, cristalina, desavergonhada. Os policiais mataram vendedores ambulantes, operários, catadores e outros trabalhadores que vivem em favelas da cidade litorânea. “A favela toda ouviu o que eles fizeram. Eles [policiais] gritavam para jogar a arma no chão, e ele [Felipe] repetia que não tinha arma. Então eles atiraram, e ele começou a pedir ajuda. Esperaram morrer para, só depois, jogar no camburão e entregar na UPA [Unidade de Pronto-Atendimento] já sem vida, igual um lixo”, narrou moradora da comunidade Vila Baiana a Kaique Dalapola, da Ponte, sobre a morte do ambulante Felipe Vieira, pai de uma menina de 6 anos.
Inexistiu qualquer intenção de encontrar criminosos. “Quem ainda é do crime já meteu o pé daqui. Só quem continua e corre risco de morrer são os pais de família que um dia foram presos e hoje seguem a vida correta, ou a molecada que infelizmente comete um delito ou outro, mas não tem nenhuma condição de fugir das mãos dos policiais”, denuncia morador de Vila Edna, outra favela, também à Ponte.
Mas comandar uma tropa assassina orgulha Tarcísio de Freitas. “Não houve hostilidade, não houve excesso, houve uma atuação profissional e que resultou em prisões. A Polícia Militar (…) deu uma grande demonstração de profissionalismo nessas operações. Nós não vamos deixar passar impune agressão a policial”, festejou o bolsonarista. “Sempre disse que sem ordem a gente nunca vai ter progresso”, acrescentou, numa platitude.
(Em semana tragicamente inspirada, o governador paulista anunciou o fim dos livros impressos nos colégios estaduais. Outro crime.)
Mas a capital brasileira dos crimes não poderia ficar atrás – e a polícia do Rio também tem (mais) uma chacina para chamar de sua nesta semana. Uma dezena de brasileiros morreu em operação das tropas de elite no Conjunto de Favelas da Penha. O pretexto foi uma “reunião de chefes do Comando Vermelho”, que estaria acontecendo num canto da comunidade. A rotina do lugar acabou totalmente inviabilizada – 3.220 estudantes ficaram sem aulas, em efeito colateral sempre menosprezado.
O Rio, veterano nessa prosa, sofistica as desculpas. Vários mortos seriam comandantes das facções que assolam a região metropolitana. A longa odisseia da segurança no estado prova que, novamente, o banho de sangue vai resolver nada. Exterminar criminosos e inocentes em favelas tem sido a prática há décadas – e um sistemático fracasso dos agentes públicos. O estado conjuga incompetência, racismo e brutalidade, e a vida só piora.
Policiais de todos os lugares se entendem no direito de ignorar a lei e a Justiça. Desde a fase aguda da pandemia, o STF determinou restrições para operações em comunidades populares, mas a ordem segue sendo ignorada. Vigora também a exigência de todos os policiais portarem câmeras em suas roupas – mas o Bope ignorou e seus soldados agiram fora da lei no Complexo da Penha.
Bolsonarista como seu colega de São Paulo, Claudio Castro (PL), o governador fluminense, ouviu com indiferença o questionamento. Após destacar que a atuação de seus comandados foi “bem-sucedida”, prometeu sindicância para apurar por que a ordem das câmeras não foi respeitada. Até as pedras portuguesas das calçadas cariocas sabem que dará em nada.
Porque é assim, com impunidade e violência, que a banda toca na segurança – independentemente de quem esteja no poder. Na hora de apertar o gatilho, progressistas e conservadores viram todos a mesma pessoa.