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O culto ao Capitão Nascimento, de 'Tropa de Elite', serve de marco zero à narrativa que decidiu a eleição no Rio e no Brasil

Por Aydano André Motta | ArtigoODS 11ODS 8 • Publicada em 19 de novembro de 2018 - 08:42 • Atualizada em 4 de agosto de 2023 - 14:01

O Capitão Nascimento de Wagner Moura: paixão nacional pela violência glamurizada. Foto de divulgação

Não vai subir ninguém – só a truculência disfarçada sob o discurso da ordem e da segurança. Desde sua formação, a sociedade brasileira carrega a violência no DNA. Terreno fértil, daqueles em que se plantando tudo dá, para pavimentar aventuras autoritárias, camufladas sob discurso do combate aos criminosos – bandidos, no dialeto dos estetas da ideologia –, o Brasil estava madurinho para se jogar num projeto político com a intolerância como alicerce. Já que missão dada é missão cumprida, está aí o resultado.

Será objeto de estudo no futuro por que diabos a quinta população da Terra, a oitava economia do mundo, foi parar nas mãos de um político opaco, ex-capitão desimportante do Exército, famoso somente pelos atos de indisciplina. Boa parte da população entregou-se apaixonadamente ao dono de 27 anos invisíveis de vida parlamentar, enxergando nele mistura de astro pop e super-herói, expressa no epíteto “mito”. Mas onde essa maluquice começou?

O cabo eleitoral número 1 é, irresistível coincidência, um colega de patente do presidente eleito: ele mesmo, o Capitão Nascimento. Possivelmente o personagem mais famoso do grande Wagner Moura (materializado, registre-se, em espetacular desempenho de ator), o protagonista de “Tropa de Elite” deu vocabulário e formato a um sentimento crescente na sociedade. O filme doura a tortura e desfila um cardápio de brutalidades, para absoluto delírio de milhões de espectadores nos cinemas e na internet. Escora-se em pensamentos rasos – “Quando eu vejo passeata contra a violência, parceiro, eu tenho vontade de sair metendo porrada” –, comete crimes com desenvoltura – “Bota ele no saco” – e formula um trecho do discurso vencedor – “Se o Bope tratasse político corrupto como trata traficante, o Brasil seria um país melhor“.

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Blockbuster nacional, a obra de José Padilha, lançada em 2007, atraiu aproximadamente 2,5 milhões de pessoas ao cinema, foi reproduzida em cerca de 11 milhões de cópias piratas – caiu na internet antes de ser lançado – e conquistou número infinito de espectadores dos canais a cabo (passa praticamente todo dia). Mas seu maior sucesso viria depois disso tudo, ao se encaixar à perfeição na narrativa vencedora em outubro.

Pilotando uma fictícia tropa de policiais honestos, Nascimento entende que sua retidão financeira é aval para qualquer barbaridade. Não há, na trama, qualquer sinal de respeito à democracia, Estado de Direito, ônus da prova e outros luxos. O “pessoal do direitos humanos” vira piada na ONG promíscua, no debate dos bem nascidos emaconhados, nos ricos “com consciência social”. Nunca serão.

As ruas do Rio de Janeiro – tambor e vitrine nacionais da violência urbana glamurizada, sedutora – transformaram os bordões do filme em gíria. Num tempo pré-redes sociais e WhatsApp, chamar o Capitão Nascimento ou o filme de fascista era garantia de treta forte. Vigora até hoje o sonho de uma polícia como aquela, totalmente baseada em fatos reais – “Homem de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar corpo no chão” –, liderada por um super-herói fardado e frasista.

O extermínio cinematográfico enfeitou a vitória da narrativa do vale-tudo contra o crime nos guetos e periferias. Não adianta alertar que o banho de sangue nos levou a ter 25 das 50 cidades mais violentas do mundo. Tampouco que os 63.880 homicídios – ou 175 por dia – registrados em 2017 (aumento de 2,9% em relação ao ano anterior) só agravaram o problema. A doutrina Capitão Nascimento capturou a maioria da sociedade, que se entregou surda e apaixonada. E bota na conta do Papa.

Assim, bastou adaptar o roteiro à luta política e bombá-lo no combustível das fake news, que o jogo estava jogado. O cenário de “Tropa de Elite” será governado, a partir de janeiro, por um senhor que prega desavergonhadamente abates à distância, uso de equipamentos para extermínio e dá de ombros para direitos e cautelas. No Brasil das disputas de terra e do genocídio da população negra, não será diferente.

Porque missão dada é missão cumprida.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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