(Cristina Ávila e Leanderson Lima* – Brasília/DF e Manaus/AM) – O ministro André Mendonça pediu vista e, novamente, paralisou a ação que julga a tese do marco temporal. Ao seguir a cartilha que dele se espera como indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro abre espaço para a barganha política dentro do Congresso. No fim do mês passado, os deputados federais aprovaram o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que estabelece uma data para a demarcação de terras indígenas no Brasil.
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“Eles se acovardaram. Querem de maneira amigável fazer quase uma remoção forçada (dos povos originários de suas terras). Querem um grande acordão, uma República de acordões onde os direitos humanos nunca prevalecem”, disse o assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Maurício Terena, na plenária realizada no início da noite, depois que a marcha indígena que esteve durante a tarde em frente ao STF retornou ao acampamento montado com cerca de 1.500 indígenas em Brasília.
Maurício Terena se referia especialmente ao voto do ministro Alexandre de Morais, que embora tenha rechaçado o marco temporal propôs ampliar a possibilidade de indenização de ocupantes de territórios indígenas do que chamou de “boa-fé”. “(O ministro) está criando possibilidade para agradar quem grilou a terra. Continuamos sujeitos de segunda classe. Foi isso que quis o Constituinte de 88? Não, na Constituição o direito foi dado por inteiro. O ministro Edson Fachin reconheceu o nosso direito por inteiro. E não queremos a metade. Nosso direito à terra tradicional é inegociável. Estou com ódio”, desabafou Maurício Terena.
O julgamento na Corte começou em setembro de 2021, e até o momento já votaram contra o marco temporal o relator do caso, Luiz Edson Fachin, e o ministro Alexandre de Moraes, em voto na tarde desta quarta-feira (7). O ministro Nunes Marques, outro indicado por Bolsonaro (PL), votou a favor de definir que só poderá haver homologação de terras indígenas cujos pedidos foram feitos até a Constituição de 1988 – daí a tese de um marco temporal.
Em sua justificativa, André Mendonça elogiou o voto de Alexandre de Moraes, mas disse que precisava de “maior reflexão” para poder se manifestar. “A questão da indenização, a questão de um equilíbrio de justiça (…) a temática é complexa, relevante não só pela questão fática, pela questão histórica, pela questão jurídica, pela questão dos valores que estão em jogo tanto das comunidades indígenas e tradicionais como também em relação a pessoas que vieram para o país”, pontuou.
O pedido de vista de Mendonça, além de desmobilizar as lideranças indígenas que depositavam na conclusão do julgamento do STF um contraponto ao avanço da frente antiindígena no Congresso, acaba por devolver as atenções na tramitação do PL 490/07 junto ao Senado. A bancada do agronegócio defende o PL 490. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ao contrário de Arthur Lira, presidente da Câmara, já sinalizou que não aceitará pressão dos parlamentares, ignorando pedidos de urgência para votar o projeto de lei.
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Veja o que já enviamosAndré Mendonça tem, segundo regimento do STF, até 90 dias para devolver o processo para o julgamento. Mas, em público, ele se comprometeu a fazer isso ainda sob a gestão da presidenta da Corte, Rosa Weber. Ela vai se aposentar por idade em outubro e já manifestou que quer proferir seu voto: “Só espero que eu tenha condições de votar, porque eu tenho uma limitação temporal”, disse ela.
O novo adiamento foi criticado por lideranças indígenas, como a deputada Célia Xakriabá (Psol-MG). “Seguiremos em luta até que o julgamento seja retomado, mas hoje celebramos mais um voto favorável. E que retomem ainda em tempo do voto de Rosa Weber que deve se aposentar em breve. Contamos com ela!”, escreveu a deputada em seu Twitter.
A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara (Psol), que esteve presente na sessão do STF ao lado da deputada Célia Xabriabá, também se manifestou. “É fundamental que o julgamento seja retomado o quanto antes para garantir os direitos dos povos indígenas. O pedido de vista no julgamento do Marco Temporal trará mais tempo para análise. Seguimos otimistas em busca de um desfecho que rejeite essa tese. Até o momento, já contamos com dois votos contrários e um favorável. Continuaremos na luta pelos direitos dos povos indígenas!”, disse a ministra pelo Twitter.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) também se manifestou. “Teremos que esperar mais uma vez, mas não vamos retroceder!”, disse em nota.
Moraes rejeita marco temporal
Em seu voto no Recurso Extraordinário (RE) 1017365, o ministro Alexandre de Moraes lembrou o conflito que deu origem ao julgamento da tese do marco temporal. “Não podemos fechar os olhos a outras situações que eu trouxe aqui da comunidade dos índios Xokleng. Da mesma forma que não podemos fechar os olhos pros agricultores que têm suas terras, trabalham nas suas terras”, discursou.
Em seu voto, Moraes tratou também da questão das indenizações àqueles que ocuparam terras dos povos originários. “A indenização deve ser completa para aquele de boa-fé. Não tinha como saber 130, 160 anos depois. A culpa, a omissão foi do poder público, que precisa arcar para garantir a paz social”, disse, lembrando a complexidade do tema.
“É uma questão que juridicamente é complexa, vem gerando insegurança jurídica e a paz social por séculos sem que haja até hoje um bom modelo em efetivo modelo a ser seguido”, afirmou Moraes, lembrando que a questão envolvendo territórios indígenas não exclusividade brasileira. “Nenhum país do mundo conseguiu resolver de forma plena e satisfatória essa questão”.
Ameaça à demarcação
Na mobilização contra a tese que ameaça os direitos indígenas, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) apresentou o relatório “Riscos e violações de direitos associados à tese do Marco Temporal: Uma análise interdisciplinar a partir do direito, da economia, da antropologia e das ciências climáticas”. O documento apresenta os impactos de um eventual reconhecimento do marco temporal pelo STF, ou mesmo a aprovação do Projeto de Lei (PL) 490/07 pelo Congresso.
No primeiro ponto, a Apib afirma que “o marco temporal não tem lastro na Constituição Federal e nem em tratados internacionais que versam sobre os direitos indígenas e sobre direitos humanos”. Ressalta, no ponto seguinte, que o “marco temporal impede a demarcação de novas terras indígenas no Brasil, e fragiliza a proteção das terras indígenas já demarcadas”.
Nunca é demais lembrar que a Constituição Federal, de 1988, estipulou o prazo de cinco anos para a União demarcar todas as terras indígenas no Brasil. E, no entanto, segundo o relatório, existem hoje pelo menos “242 terras indígenas que não foram demarcadas, com processos que se arrastam por anos, seja em trâmites administrativos, seja em processos judiciais. Somadas às 490 terras indígenas já homologadas pela Presidência da República, as por demarcar representam 33% do território indígena já identificado”.
Para exemplificar a questão, o relatório lembra o caso da Terra Indígena Limão Verde, no Mato Grosso do Sul, que teve sua homologação suspensa pelo STF “sob a alegação de que os indígenas não comprovaram conflito possessório que justificasse a não ocupação do território em outubro de 1988, a despeito da apresentação de documentos que atestavam o pleito a órgãos públicos pela demarcação da área desde, pelo menos, a década de 1960”, descreve o relatório.
No terceiro ponto, a Apib aponta que o marco temporal aumenta a incerteza e a insegurança fundiária, favorece a grilagem de terras e representa um obstáculo para a boa governança e desenvolvimento da Amazônia.
Ainda segundo a Apib, a tese do marco temporal coloca em risco muitos serviços ambientais gerados por terras indígenas e impede a ampliação desses serviços ao frear a demarcação dessas terras. Por fim, o relatório aponta que ao enfraquecer direitos territoriais indígenas, a tese do Marco Temporal contribui para as mudanças climáticas globais. A validação do marco temporal pelo STF terá efeitos de longo prazo no aumento da emissão de gases de efeito estufa, especialmente na Amazônia brasileira.
Indígenas mobilizados
Até a manhã desta quarta-feira, continuavam chegando em Brasília caravanas de indígenas dos Estados para acompanhar o julgamento do marco temporal. Segundo a assessora de comunicação da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Samela Saterê Mauê, de entre 1 mil e 2 mil indígenas deveriam chegar à capital federal. “Os Kayapó vieram em quatro ônibus e os Munduruku também vieram em grande número, pois vieram também acompanhar a tramitação da ferrovia Ferrogrão (empreendimento de interesse do agronegócio). E povos como os Tapirapé que não costumam vir a Brasília acompanham de perto o julgamento”, afirmou Samela.
O cacique Valdemar Tapirapé disse que mais de 100 indígenas de seu povo já estão na capital e que eles estão da capital pela segunda vez em 2023. “Estamos preocupados”, disse o pioneiro do movimento indígena brasileiro, que participou de importantes mobilizações em Brasília que foram fundamentais durante a Assembleia Nacional Constituinte que foi fundamental para a garantia dos direitos originários na Constituição.
Os Tapirapé e outros povos tiveram outras agendas em Brasília. Estiveram no Congresso, para a articulação nas votações do Projeto de Lei 490, que tenta levar para o parlamento a função de demarcar territórios indígenas, hoje na Fundação dos Povos Indígenas (Funai). Na terça-feira, eles visitaram a Advocacia-Geral da União (AGU), que reforça o marco temporal por meio do Parecer 001/2007 e já se manifestou favorável a essa tese no STF.
Valdemar Tapirapé conta que o seu território Urubu Branco, em Confresa, no Mato Grosso, está invadido e sendo crescentemente desmatado, reduzindo a caça e os peixes. Ele conta que especialmente a árvore do pau-brasil foi praticamente extinta por conta da extração para construção de cercas. “Estivemos ontem na Funai pra pedir a dfersintrusão”. Ele afirma que há criação de gado e nos limites da terra tradicional também há plantio de soja.
“Quando o Bolsonaro estava na Presidência, eles diziam que a terra era deles. Andam armados. Todas as moradias deles têm armas”, acentua Valdemar. O seu sobrinho, Bismarck, sobrinho dele, calcula que sejam aproximadamente 100 casas de invasores e que já foi expedida uma liminar judicial para que cessem as atividades de invasores no território até que haja avanços na demarcação da terra.
Os indígenas estão acampados no Eixo Monumental, a cerca de 3 quilômetros de distância do STF, e realizaram uma plenária nesta quarta-feira. A ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge falou na plenária indígena e enfatizou que a demarcação dos territórios tradicionais é o reconhecimento do Estado pelo direito dos povos originários e “independe de ato constitutivo”. A procuradora garantiu a defesa do Ministério Público Federal a esses direitos.
Também na plenária, o advogado indígena Ivo Makuxi asseverou que o marco temporal representa “a tentativa de colonização, que muda de estratégias” ao longo da história. Ele enfatizou que os direitos “na Carta maior” da legislação brasileira são assegurados por cláusulas pétreas. “Pedras duras que não podem jamais serem alteradas”. “Não existe marco temporal na Constituição; o que se vê no Congresso é discurso de ódio na tentativa de destruir a lei. E o STF não vai decidir contra o texto da Constituição”, previa.
Também esteve na plenária indígena no acampamento pela manhã o diretor do Escritório da OIT (Organização Internacional do Trabalho) no Brasil Vinicius Pinheiro. Ele enfatizou especialmente a Convenção 169, que entre outros direitos prevê a consulta prévia aos povos originários sempre que forem tomadas medidas que possam impactá-los.
Vinicius Pinheiro citou processos como a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI-5905) que chegou ao STF impetrada em 2018 pelo Governo de Roraima na tentativa de derrubar por via judicial o tratado internacional. “Temos a oportunidade de tornar irreversível este argumento no Supremo, de que são nulos todos os processos que incidam sobre territórios indígenas tradicionais”.
A subprocuradora-Geral do Trabalho, Edelamare Barbosa Melo, enfatizou que o marco temporal está intimamente ligado à questão do trabalho. “Essas violências sofridas têm tudo a ver com o mundo do trabalho, pois o território é indispensável pela segurança alimentar, para a força espiritual, as pessoas são extensão do território, e o direito ao território é o direito de existir”.
Na sede do STF
Um pouco antes das 13h30, os primeiros indígenas começaram a chegar no prédio do STF, cuja entrada foi controlada em uma tenda fechada por grades na lateral. Brasília nunca esteve tão calma em dia tão importante para os povos originários. Naquele horário, começou a sair do acampamento a marcha que se juntaria nos arredores do STF, embora sabendo que não poderiam acompanhar o julgamento, pois diferentemente de outras vezes não foi instalado telão na Praça dos Três Poderes.
As organizações que constituem a Apib indicaram 50 lideranças dos povos com assento garantido na sala de julgamento. Os primeiros a chegarem foram povos do Nordeste. A marcha indígena que saiu do acampamento chegou à Praça dos Três Poderes quase às 15h. Foram travados na descida em uma barreira montada na altura do Ministério da Saúde,do lado do Itamaraty, o mais próximo do STF (cerca de 500 metros).
Cerca de 500 indígenas foram impedidos de seguir o grupo que iria para o STF. Entre eles mais de 150 Xokleng, que vieram em quatro ônibus de Santa Catarina. A ação do marco temporal julga, justamente, o caso dos Xokleng. O destaque desta quarta-feira foram as 40 guerreiras Kayapó que ficaram irritadas com a barreira e deram gritos de guerra, batendo forte bordunas no solo. Elas fizeram vários rituais de dança.
Foi permitido apenas que descesse o Eixo Monumental uma parte do grupo, pouco mais de 100, onde estavam uns 30 Xokleng, que foram obrigados a permanecer no sol escaldante do Cerrado, em um cercadinho de grades. Em volta deles, ficaram postados cerca de 40 policiais militares com cacetete e capacete com visor, deixando inquieta a tarde que parecia calma.
*Cristina Ávila é formada em comunicação na PUC-RS e começou no jornalismo em pequenos diários de Porto Velho, em Rondônia; trabalhou em redações de jornais, especialmente no Correio Braziliense, e no Ministério do Meio Ambiente, entre 2009 e 2015; Leanderson Lima é jornalista com 18 anos de experiência profissional no Amazonas e vencedor do Prêmio Petrobras de Jornalismo de 2015