Por que o Brasil se conformou com a violência contra pessoas LGBT+?

Roberta Nascimento, Samuel Luiz Muñiz, Gabriel Garcia e Paloma Amaral foram vítimas de LGBTfobia. Apenas Paloma conseguiu sair viva (Ilustração: Claudio Duarte)

Em crônica, jornalista e escritor questiona por que na Espanha a morte de um jovem gay leva milhares para as ruas, enquanto no Brasil o poder público se omite e a população assiste à violência calada.

Por Vinícius Grossos | ODS 16 • Publicada em 21 de setembro de 2021 - 08:30 • Atualizada em 30 de setembro de 2021 - 12:33

Roberta Nascimento, Samuel Luiz Muñiz, Gabriel Garcia e Paloma Amaral foram vítimas de LGBTfobia. Apenas Paloma conseguiu sair viva (Ilustração: Claudio Duarte)

São Paulo. Era sábado, início da noite. Os termômetros marcavam 18°C, um fim de dia agradável. Eu, jovem LGBT+, caminhava ao lado do meu namorado na Avenida Paulista, depois de assistir a um filme no cinema e ter jantado em um dos nossos restaurantes favoritos. Fazendo o caminho de volta para casa a pé, cruzamos com um casal de meninas. Elas não deviam ter mais que 20 anos: cabelos coloridos, olhares trocados de afeto e mãos entrelaçadas. Elas riam de uma piada qualquer, como se o mundo fosse inteirinho delas.

Leu essa? O que devo fazer em caso de violência LGBTIfóbica?

Na hora, meu namorado estendeu a mão, como quem não queria nada, e segurou na minha. Uma demonstração de afeto que devia ser tão simples… Mas eu gelei. Parei de andar na hora. Com os olhos assustados, soltei da mão dele e olhei para os lados, como se estivesse à espera de alguma tragédia.

“Por que você tem medo de segurar a minha mão?”, ele perguntou.

Em crônica, Vinícius Grossos mostra como o simples gesto de dar as mãos nas ruas pode ser perigoso para casais LGBT+ (Ilustração: Claudio Duarte)
Em crônica, Vinícius Grossos mostra como o simples gesto de dar as mãos nas ruas pode ser perigoso para casais LGBT+ (Ilustração: Claudio Duarte)

As palavras fugiram de mim, enquanto eu olhava o semáforo. Naqueles poucos segundos, pensei em muita coisa. Pensei em muita gente. Pensei em Gabriel Garcia, que tinha 22 anos quando foi assassinado numa terça-feira, 23 de junho, mês do Orgulho LGBT+, em Embu das Artes, São Paulo.

Um desconhecido encapuzado e armado invadiu o salão onde Gabriel esperava sua vez para cortar o cabelo. Na Rua Gaurama, no bairro Pirajussara, por volta das 18h, segundo o boletim de ocorrência. O homem não pediu nada, além do seu futuro. Não roubou nada, além da sua vida. Não olhou para mais ninguém, apenas para alguém que brilhava em um mundo sem cores. Ali, com três tiros na cabeça, numa situação completamente cotidiana, o destino de Gabriel, na foto abaixo, foi traçado e ele, executado a sangue frio.

Gabriel, que recebia apoio da família e do namorado, tinha voltado recentemente a morar com a mãe, depois que a pandemia do coronavírus impossibilitou, financeiramente, que ele continuasse a morar na casa alugada com o namorado.

Pensei também em Roberta Nascimento da Silva. Mulher trans, de 32 anos, que em 24 de junho, um dia após a morte de Gabriel, teve seu corpo queimado no centro do Recife, Pernambuco. 

Roberta, que estava em situação de rua, foi atacada por um adolescente de 17 anos, que não tinha relação e contato nenhum com ela. Um adolescente que jogou líquido inflamável em seu corpo e ateou fogo como se fosse nada mais que uma folha do jornal de ontem.

Na luta pela vida, por conta dos graves ferimentos, Roberta precisou ter os dois braços amputados, um após o outro. Teve complicações respiratórias, o que a levou para a UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Somado a isso, Roberta teve uma piora no sistema renal, passando por sessões de diálise.

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A juventude LGBT+ é morta todos os dias, com requintes de crueldade, apenas por sermos quem somos. Apenas por acordarmos, existirmos e resistirmos a mais um dia em uma sociedade que nos empurra para a margem a todo o momento

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No dia 9 de julho, poucas semanas depois, o Hospital da Restauração, onde Roberta estava internada, confirmou a sua morte, por falência múltipla dos órgãos.

Pensei então em Paloma Amaral, mais conhecida como “Amaral”, uma travesti negra que no dia 19 de julho, teve sua dignidade e humanidade dilacerada e exposta em um vídeo que foi compartilhado na internet. Durante mais de dois minutos, assistimos Paloma com os pés amarrados, sendo derrubada no chão e espancada por dois homens com socos e pedaços de pau. Depois, é jogada no porta-malas de um carro, onde as agressões continuam.

Os agressores dão a entender, pelas falas registradas, que estão atrás de um objeto de valor que foi supostamente furtado por Paloma. A população, que acompanhava a cena, até pedia para que os agressores parassem com a violência, mas não fazia nada. Porém, o mais chocante é que o caso, que ocorreu no bairro de São Joaquim, Zona Norte de Teresina, no Piauí, foi acompanhado por agentes da Guarda Municipal, que simplesmente não impediram as agressões ou sequer interviram — um exemplo claro de como o poder público, em muitos casos, olha a agressão contra a população LGBT+ em silêncio.

Um estudo feito por pesquisadores em políticas e gestão pública da USP resultou no relatório “LGBTQIA+ em pauta”. Ele mostra que 60% das execuções de pessoas trans ocorreram em espaços públicos.

Por meio de uma nota de esclarecimento divulgada em seguida à viralização do vídeo, a Guarda Civil Municipal de Teresina (GCM) informou que todos foram levados para a delegacia para apuração do caso e que iria apurar possíveis falhas no procedimento de agentes.

Falhas? Infelizmente, a falha maior é nossa, como sociedade.

Por fim, pensei em Samuel Luiz Muñiz, brasileiro que vivia na Espanha desde o primeiro ano de idade, e que foi brutalmente espancado no dia primeiro de julho. Samuel, que era enfermeiro, aproveitava a reabertura das casas noturnas na Espanha com uma amiga, quando foi agredido por um homem que alegava que Samuel o estava filmando. O homem então se afastou, e quando retornou, vinha acompanhado de aproximadamente dez pessoas.

Uma dezena de homens bateram em Samuel. Os serviços de resgate não conseguiram reanimá-lo e a vítima morreu no dia 03 de julho. Na segunda-feira, 5 de julho, a Espanha parou. A praça María Pita, na região central de A Coruña, ficou lotada com milhares de pessoas que clamavam por justiça. Também foram realizadas manifestações nas regiões de Astúrias, Aragão, Castela e Leão, Catalunha, Castela-La Mancha, Comunidade Valenciana, La Rioja, Murcia, Andaluzia, Extremadura e Madri. Na internet, a hashtag #JustiçaparaSamuel dominou os assuntos mais comentados do momento, não só no país, como no Brasil também.

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Cadê a nossa humanidade quando ficamos sabendo que uma travesti foi morta com o corpo queimado? Que um jovem de 22 anos tomou um tiro na cabeça? Cadê os nossos gritos, nossos protestos, nossos pedidos por justiça?

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Pensei em Gabriel, em Roberta, em Paloma e em Samuel ao ver a mão estendida do meu namorado. Pensei em cada um deles, e em tantas outras vidas que acabam não valendo nem uma notinha nos jornais. O que aconteceu com Samuel foi uma brutalidade inenarrável. Mais uma morte que virou um símbolo de basta contra a LGBTfobia que nos tira a vida todos os dias. Mas cadê a voz do Brasil quando crimes hediondos acontecem aqui, no nosso país, todos os dias?

Cadê a nossa humanidade quando ficamos sabendo que uma travesti foi morta com o corpo queimado? Que um jovem de 22 anos tomou um tiro na cabeça? Cadê os nossos gritos, nossos protestos, nossos pedidos por justiça?!

Por que o Brasil não dá atenção à violência contra pessoas LGBT+? Por que nossa vida vale tão pouco? Por que nosso sangue, nossa carne, nossos ossos, são condenados a um fim?

Muitos dizem que a violência no país que é a maior vilã da história – que casos de violência acometem a população heterossexual e cisgênero todos os dias. E eu posso até concordar, em partes, porque as mortes acontecem e isso é um fato. Porém, a juventude LGBT+ é morta todos os dias, com requintes de crueldade, apenas por sermos quem somos. Apenas por acordarmos, existirmos e resistirmos a mais um dia em uma sociedade que nos empurra para a margem a todo o momento.

Segundo o relatório “Observatório de mortes violentas de LGBTI+ no Brasil”, organizado pelos grupos Acontece Arte e Política LGBTI+ e Grupo Gay da Bahia, em 2020, 237 LGBT+ foram mortos violentamente no Brasil, vítimas da LGBTfobia. Porém muitas dessas mortes são registradas apenas como homicídios comuns, como o caso de Roberta, o que torna o número uma amostra de um terror que pode ser bem maior.

Crescer como um LGBT+ no Brasil não é fácil. Nossa adolescência é roubada. Nossa vida é traçada pelo medo.

“Eu quero é vida para a gente. Quero beijos, sorrisos, choros de felicidade, alegria, dança, futuro. Amor! Quero amor!” (Ilustração: Claudio Duarte)

Não quero perder mais gente como eu. Não quero mais perder colegas, amigos ou amores. Não quero que virem símbolos de luta quando lembrados. Eu quero é vida para a gente. Quero beijos, sorrisos, choros de felicidade, alegria, dança, futuro. Amor! Quero amor! Quero poder segurar na mão de quem eu amo. E quero que os meus também possam.

“Por que você tem medo de segurar a minha mão?”. De volta à Avenida Paulista, a pergunta ainda ficava rodando meus pensamentos. Com um sorriso frustrado, percebi que na verdade, o poder público é que se recusa a segurar a nossa mão todos os dias. E é exaustivo viver com medo. Mas sigo de mãos dadas com a fé em dias melhores… Por enquanto, é tudo o que tenho.

Vinícius Grossos

Natural de Duque de Caxias (RJ) e atualmente morando em São Paulo, é formado em jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora e escritor por amar a poesia da vida. Já publicou quatro livros focados no público juvenil, permeados de protagonismo LGBT+. Um deles foi traduzido e lançado recentemente na Colômbia. Acredita que as palavras podem transformar o mundo.

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Um comentário em “Por que o Brasil se conformou com a violência contra pessoas LGBT+?

  1. Observador disse:

    O momento percebo é semelhante as manifestações pela derrota do Bolsonaro! Ou seja, Resistência a idéia de que os Bissexuais estão se relacionando com mesmo genero, com mais naturalidade! Por sermos coroas e haver a placa de taxi no carro, quando desço do carro (ainda mais pela porta da frente), depois do selinho, nem sempre mas há pessoas que fazem questão de mostrar terem nos assistido, mas presumo como a relação comercial se mantém: passageiro pagando pela corrida, evitam comentar! Mas uma forma de, digamos, as pessoas que sejam jovens, se resguardarem é estarem em grupos, mostrando serem casais homoafetivos, porque Não deveria ser dessa forma mas as Regras Sociais são Atualizadas, quando a Sociedade finalmente se conscientiza que vieram para ficar!

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