Era o “pá-pum” começar e pronto: voar pra debaixo do colchão, correr pro banheiro, ir pra sala em busca de sossego, mesmo sabendo de que ele, o sossego, não viria. Nas rajadas, o crescer de algo que poderia atravessar o muro da porta ou da parede da sala de estar. E assim, não ser nem mais eu, nem ninguém ali dentro.
Do cano do fuzil o arrepio? Sentia. Mas, mais do que dele poderia vir, arrepiava o olhar estranho, invasivo e que amedronta num policial. Nunca sabia ao certo se era desconfiança, modus operandi ou sarcasmo a expressão dura e, às vezes, debochada, flertando com a dose certa de poder sobre quem passasse na frente.
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Das angústias que tinha na vida, ser parado pela polícia era uma da qual tentei fugir. Sempre. Até que, numa tarde ensolarada, enquanto os tiros cortavam os céus da Rocinha, saía de lá para o trabalho. Mochila nas costas e na garupa da moto, fui repreendido. Não bastou que movesse a arma para entender que, por minutos, passaria a levar uma “batida” do policial. “Tá indo pra onde?”, ouvi. Na resposta, a verdade: “Tô indo pro trabalho”. No semblante de quem a recebeu, uma informação em suspeito. “Tu tá indo pra onde? Pro trabalho?”.
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Veja o que já enviamosA insistência só parou quando mostrei o crachá daquela que faz a televisão ganhar outros sinônimos. “Plim-plim” e já não segurava mais a mochila, o comando já era para que a viatura deixasse a moto passar – e “ufa, ainda bem que tô vivo e trouxe o crachá”. Uma sensação esquisita de alívio, raiva e pânico caso não apresentasse nada que pudesse corroborar a minha saída em meio ao caos.
Nas mais tenras lembranças, a figura da Polícia e, por sua vez, do policial, sempre foram, a mim, tratadas como algo a se temer – ainda que eu precise deles para segurança; afinal, a polícia e seus agentes deveriam salvaguardar a vida, não tirá-la. Uma vez, Caetano Veloso disse que quando alguém era preso, a sensação era de que mesmo se houvesse liberdade, ainda pairava o fato do momento de reclusão (aqui não por decisão própria).
É que mesmo hoje, crescido, sinto os reflexos disso. Ninguém parece querer entender o impacto da Polícia na vida e os traumas de quem sentiu na pele, no corpo, e segue marcado na mente. Esse impacto é validado em análises como a publicada recentemente pela Anistia Internacional Brasil, apontando que a ação policial – pautada na repressão e no confronto, com operações militarizadas em territórios de favelas e periferias e uso excessivo da força – desrespeita até mesmo parâmetros internacionais e implica numa série de violações. E, dessa forma, mobilizar o racismo no Brasil.
Na São Conrado oriental em que me posiciono hoje, uma viatura da polícia me “protege” dos perigos do dia e do escuro da noite. Embaixo do prédio, a sensação de segurança para todos os vizinhos. Na minha cabeça, o medo de que de uma hora pra outra possa acontecer algo. Eu não sei lidar.
Da janela, a Rocinha ocidental e seu mar de casas, onde nasci e cresci – a representação do lugar onde a Polícia e o policial precisam atuar em tática de guerra. Contra quem? Sob uma norma insana de segurança, o apelo ostensivo.
Botões da cabeça são ligados, ao passo que vejo nas timelines, as imagens chocantes de caveirões blindados no pátio de um Ciep. E bombas de gás dispersando crianças que estavam ali para estudar; pais e responsáveis que confiavam àquele lugar, a proteção de meninas e meninos. De acordo com a Redes da Maré, mais de cinco mil crianças tiveram aulas suspensas com a operação.
Penso na criança que fui. Vejo as crianças de hoje. A insistência e persistência da violência A insistência e persistência da política de insegurança.
Imagens de uma semana que deveria ser santa, em que as crianças pedem a vinda do coelho repleto de chocolates.
Feliz Páscoa.
P.S. Essa coluna foi “fechada” na garupa da moto, em direção a redação do #Colabora. E fui parado por minutos pela Polícia. Metalinguagem