Mundukurus denunciam PMs por terror e mortes no Amazonas

O bispo do Amazonas, representantes de entidades e do Ministério Público em reunião sobre conflito no Rio Abacaxis: mortes em disputa pelo uso da água (Foto: Clodoaldo Pontes/CPT – 19/08/2020)

Bispo de Manaus e mais 50 entidades pedem ação da Polícia Federal e retirada de policiais militares de Nova Olinda do Norte

Por Amazônia Real | ODS 16 • Publicada em 19 de agosto de 2020 - 16:21 • Atualizada em 2 de janeiro de 2021 - 10:22

O bispo do Amazonas, representantes de entidades e do Ministério Público em reunião sobre conflito no Rio Abacaxis: mortes em disputa pelo uso da água (Foto: Clodoaldo Pontes/CPT – 19/08/2020)

Izabel Santos*

Manaus (AM) – Uma operação da Polícia Militar do Amazonas, em Nova Olinda do Norte, é investigada por excessos, abusos de autoridade e violações de direitos dos indígenas Munduruku, da Terra Indígena Kwatá Laranjal, e Maraguá, da aldeia Terra Preta, além de ribeirinhos do Projeto de Assentamento Agroextrativista Abacaxis 2. Um Munduruku morreu e outro está desaparecido. “Nunca tinha acontecido nenhum episódio de violência como esses por aqui”, contou à agência Amazônia Real a cacica Alessandra Munduruku, tia dos indígenas Josimar Moraes Lopes, de 25 anos, encontrado morto no rio, e Josivan Moraes Lopes, de 18 anos, ainda desaparecido. “Nós estamos muito mal com isso, porque a gente não sabe o que está acontecendo e nem sabemos por onde começar para resolver essa situação”, acrescentou.

O estopim da ação policial ocorreu em 24 de julho, após Saulo Moysés Costa, então secretário-executivo do Fundo de Promoção Social do governo do Amazonas, ser baleado no ombro, quando praticava pesca esportiva sem licença ambiental na região do rio Abacaxis, próxima a comunidades tradicionais dos Projetos de Assentamento Agroextrativistas (PAEs) Abacaxis I e II, nos municípios amazonenses de Borba e Nova Olinda do Norte. Na ocasião, as atividades de cultura, esporte e lazer estavam proibidas por causa da pandemia de covid-19.

Dez dias depois, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP) deflagrou uma operação com 50 homens da Polícia Militar, incluindo membros da Companhia de Operações Especiais (COE), sob a alegação de combater o tráfico de drogas na região. O objetivo era buscar o “cara que deu o tiro” no secretário, segundo relatos de testemunhas ao Ministério Público Federal (MPF). Durante as ações da PM em Nova Olinda do Norte, ao menos oito pessoas morreram, entre elas: dois policiais; os indígenas Munduruku, e um homem acusado de chefia o tráfico de drogas pela SSP. Com as denúncias de violência, o MPF pediu a investigação da Polícia Federal, agora tem o apoio de homens da Força Nacional de Segurança, que desembarcaram na região no sábado (15/08).

A cacica Alessandra Munduruku afirmou que os sobrinhos foram confundidos com traficantes e relatou violações de direitos humanos por parte de policiais militares. Os irmãos Josimar e Josivan saíram no dia 6 de agosto da comunidade Laguinho do Bem Assim, na Terra Indígena Kwatá-Laranjal, rumo à sede do município de Nova Olinda do Norte, a 126 quilômetros de Manaus. Eles deveriam ter chegado ao destino cerca de 30 minutos depois, mas isso nunca aconteceu. “Aqui onde eu moro, a gente não tem problema com o tráfico, a gente não conhece quem os policiais dizem estar procurando. Eu não conheço a região do [rio] Abacaxis. Fica muito distante. O que eles fizeram: entraram dentro de uma área indígena, mataram dois indígenas e saíram de volta, porque a gente tem provas de que eles passaram aqui em frente da comunidade [Laguinho do Bem Assim] e chegaram até o igarapé chamado Tucunaré, chegando até o igarapé das Pedras”, relatou Alessandra à Amazônia Real.

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Eu quero apoio da Funai e da Justiça! Ninguém está vindo me ajudar. Eu quero apoio de mergulhadores, da Polícia Federal, do Ministério Público Federal, Corpo de Bombeiros, de tudo.  Não tem lógica os meus meninos que nasceram e foram criados comigo, morreram desse jeito

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De acordo com moradores do local, uma lancha da PM foi vista na região onde o corpo de um dos rapazes, Josimar Moraes Lopes, de 25 anos, foi encontrado. A cacica afirmou que ela e outros moradores da comunidade viram uma lancha “cheia de polícia” e com a inscrição “Polícia Militar” na localidade. “Eles perguntaram para indígenas que estavam pescando para que lado ficava o rio Abacaxis”, contou a cacica. “Para eles entrarem [na terra indígena], eles tinham que ter autorização”, acrescentou. O corpo de Josimar foi encontrado no rio.

Josimar (à direita) foi encontrado morto; Josivan, seu irmão, está desaparecido: mundukurus denunciam clima de terror (Reprodução)
Josimar (à direita) foi encontrado morto; Josivan, seu irmão, está desaparecido: mundukurus denunciam clima de terror (Reprodução)

Segundo Alessandra, até agora as autoridades não tomaram providências para encontrar o sobrinho desaparecido ou seu corpo. “Eu sei que a Justiça é lenta, que o sistema é lento, mas eu quero justiça pelos meus meninos”, apelou. “Eu quero apoio da Funai e da Justiça! Ninguém está vindo me ajudar. Eu quero apoio de mergulhadores, da Polícia Federal, do Ministério Público Federal, Corpo de Bombeiros, de tudo.  Não tem lógica os meus meninos que nasceram e foram criados comigo, morreram desse jeito. Não tem lógica dizer que eles eram envolvidos com drogas; eles nem frequentavam outras comunidades. Só saíam por necessidade”, afirmou a cacica.

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Meu apelo é de que o estado assuma as responsabilidades. O estado tem uma responsabilidade. A polícia militar está ligada diretamente ao estado. Não quero condenar os policiais, que as vezes estão apenas executando ordens. Mas o estado precisa se responsabilizar pelas mortes e pelas torturas feitas. Não podemos deixar em branco, não. Não é o único caso. Os outros não têm vindo à tona ainda, mas os povos indígenas têm encontrado muitas dificuldades

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Alessandra também questionou a entrada de policiais em terra indígena, sem autorização do órgão indigenista. “A nossa Funai fica em Nova Olinda do Norte. Por que eles [os policiais] não pediram autorização para entrar? Porque autorização eles não tinham, não. Não tinham e não têm”, disse. “A gente estava sem comunicação, sem informação, eles não tinham autorização para entrar dentro da área indígena e onde eles vieram entrar, na área indígena, e matar gente inocente, pois ninguém sabia de nada”

Os Mundurukus querem justiça. “Eles mataram os meus dois indígenas, mas eles têm que pagar pelo que eles fizeram e eu quero uma resposta da Justiça. Como eles estão dizendo que foi bandido que matou? Será o bandido se vestiu de polícia?! Eles já estão tirando o deles, mas eu estou acusando que foi a polícia que matou meus meninos”, afirma Alessandra Munduruku. De acordo com a cacica, nem ela nem a família dos rapazes foram procurados por representantes da SSP para qualquer tipo de apoio, mesmo após o caso já ser conhecido. “No dia que eles desapareceram, fui à delegacia registrar a situação, mas o delegado disse que estava faltando informações e que eu voltasse depois”, protestou.

Entrevista na Arquidiocese de Manaus: entidades entregam manifesto aos representantes do Ministério Público Federal e do MPE do Amazonas (Clodoaldo Pontes/CPT)

Manifesto pede que autoridades sejam responsabilizadas

Na segunda-feira (17), mais de 50 organizações de direitos humanos e entidades religiosas – entre elas, a Arquidiocese de Manaus, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab) – entregaram a representantes dos Ministérios Públicos Federal e Estadual (MPE),  documento intitulado “Manifestação contra a violência da Polícia Militar no Rio Abacaxis e na Terra Indígena Kwatá-Laranjal”, em que é solicitada a constituição de uma comissão especializada do Conselho Nacional de Direitos Humanos para visitar a região do conflito para elaborar um informe sobre as violações de direitos fundamentais das comunidades indígenas e ribeirinhas. Também solicitam a realização de buscas as pessoas desaparecidas.

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Os indígenas seguem muito aterrorizados, inclusive os ribeirinhos, e estão sem água e sem comida com medo de se deslocarem

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As organizações querem o fim da operação da PM em Nova Olinda do Norte, de acordo com o manifesto, entregue às autoridades pelo próprio bispo de Manaus,  dom Leonardo Ulrich Steiner, durante entrevista coletiva convocada pela Arquidiocese de Manaus. “A questão é grave e espero que o estado se mexa. É preciso apertar o governo do estado. Não podemos continuar desse jeito. Não podemos continuar a massacrar os pobres. Não podemos continuar a matar. Não temos o direito de matar ninguém. Seja através da morte matada, seja devagarinho, colocando estas pessoas de tal forma para dentro das florestas que não tenham como sobreviver. É tarefa do governo, é tarefa do estado dar segurança às pessoas, às populações indígenas, às populações ribeirinhas”, afirmou o bispo.

O documento ainda “que sejam de imediato afastados dos seus respectivos cargos o Secretário responsável da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Amazonas (coronel Louismar Bonates); o Comandante Geral da Polícia Militar (coronel PM Ayrton Norte) presente no local e citado diretamente na prática de torturas; o Corregedor Geral do SSP (delegado George Gomes) e delegados também presentes na operação” . Para Dom Leonardo Steiner, o estado tem que se responsabilizar. “Meu apelo é de que o estado assuma as responsabilidades. O estado tem uma responsabilidade. A polícia militar está ligada diretamente ao estado. Não quero condenar os policiais, que as vezes estão apenas executando ordens. Mas o estado precisa se responsabilizar pelas mortes e pelas torturas feitas. Não podemos deixar em branco, não. Não é o único caso. Os outros não têm vindo à tona ainda, mas os povos indígenas têm encontrado muitas dificuldades. Realmente esperamos que seja apurado e sejam responsabilizadas as pessoas. Não podemos continuar assim no estado do Amazonas”, disse o bispo de Manaus.

Na coletiva, Maiká Schwade, da Comissão Pastoral da Terra – Regional Amazonas, enfatizou a recorrência das práticas denunciadas pelos povos indígenas, populações ribeirinhas e camponesas no estado, entre elas o “uso das forças de segurança pública para fins privados, particulares”. Maiká lembrou que os casos de tortura denunciados na região de Nova Olinda do Norte, teriam sido praticados tanto na zona urbana do município de Nova Olinda do Norte quanto na zona rural, além das execuções que ocorreram na Terra Indígena Coatá-Laranjal e no Rio Abacaxis.

Edna Pitarelli, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), testemunhou o clima de terror. “Os indígenas seguem muito aterrorizados, inclusive os ribeirinhos, e estão sem água e sem comida com medo de se deslocarem”. As comunidades denunciam que a polícia deixou os corpos de três vítimas boiando por dias próxima a uma das comunidades, o que deixou a água imprópria para o consumo.

Integrantes da Polícia Federal e da Força Nacional em Nova Olinda do Norte: intervenção a pedido do MPF (Foto: Divulgação/PF)

Oito vítimas da violência

A série de mortes em Nova Olinda do Norte começou com os homicídios do cabo Mario Carlos de Souza e do sargento Manoel Wagner Silva. Segundo a SSP, ambos foram mortos por traficantes em confronto durante o primeiro dia de operação, em 3 de agosto. Na manhã de 7 de agosto, a cacica Alessandra Munduruku localizou no Laguinho do Bem Assim, na Terra Indígena Kwatá Laranjal, o corpo do sobrinho Josimar Moraes Lopes (3), de 25 anos, indígena Munduruku, morto, segundo testemunhas, por policiais militares. Para a família, o estudante Josivan Lopes, de 18 anos, também foi morto – ele estava com Josemar. Para a SSP, ele é dado como desaparecido. O corpo não foi encontrado até o momento.

No dia 8, a SSP informou que um homem identificado como Eligelson de Souza da Silva, 20 anos, foi morto ao atirar contra as equipes policiais, que revidaram. Com ele, foi apreendido um revólver calibre 38, de acordo com a polícia. No dia 11, a Polícia Federal encontrou os corpos do casal Anderson Monteiro e Vanderlania Araújo, e do adolescente Matheus Araújo. filho de Vanderlania, foram encontrados. Denúncias encaminhadas ao MPF apontam PMs como responsáveis pelas mortes.

A SSP-AM atribui as mortes ao grupo criminoso supostamente liderado por um homem identificado como Valdelice Dias da Silva, o Bacurau, que segundo a secretaria é um foragido da Justiça. Segundo a investigação, ele tinha conflitos com povos indígenas por ter invadido um terreno. “Há cerca de dois meses essa quadrilha executou o filho de um cacique Maraguá com 16 facadas”, informou o órgão por meio de nota. A SSP afirma que em todos os casos foram abertos inquéritos policiais e que as mortes serão investigadas pela Polícia Civil. “Nenhuma hipótese é descartada”, acrescenta a secretaria.

Em nota oficial, a SSP afirma que “a operação policial em Nova Olinda do Norte visa desarticular uma organização criminosa que atua na região com a prática de tráfico de drogas, ameaças, homicídios e crimes ambientais”. E informa que, até o momento, 15 pessoas foram presas, sendo 11 em flagrante. Um total de 13 armas de fogo foram apreendidas e quatro plantações de maconha localizadas”. Um dos presos, diz a nota, é o presidente da Associação Nova Esperança do Rio Abacaxis (Anera). O nome dele não foi informado pela secretaria.

*Amazônia Real

Amazônia Real

A agência de jornalismo independente Amazônia Real é organização sem fins lucrativos, sediada em Manaus, no Amazonas, que tem a missão de fazer jornalismo ético e investigativo, pautada nas questões da Amazônia e de sua população, em especial daquela que tem pouca visibilidade na grande imprensa, e uma linha editorial em defesa da democratização da informação, da liberdade de expressão e dos direitos humanos.

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