Certo mesmo seria o domingo amanhecer ensolarado e os brasileiros irmos todos para rua, cada um na sua cor, com ou sem bandeira, em grupo ou sozinho, cantando ou em silêncio, rindo ou compenetrado. Uns se encontrariam no botequim, outros na igreja, muitos se reuniriam em família, alguns acompanhariam o noticiário. No fim da jornada, vitoriosos festejariam, derrotados aceitariam e começaria novo capítulo da vida nacional.
Leu essa? O guarda da esquina empoderado
Assim deveriam correr os dias de eleição – a democracia, em seu clímax, merece uma espécie de armistício do estresse cotidiano. Pausa nas batalhas grandes, médias e pequenas, para o exame desse complexo ajuntamento territorial chamado país. Momento da avaliação de escolhas e caminhos e a reflexão sobre eventuais mudanças.
Nada disso vai rolar.
De tudo, a previsão do tempo é a que tem mais chance de acontecer – a meteorologia, ao menos, promete ausência de chuva para a maior parte do país. Na arapuca em que o Brasil se meteu, o dia da votação chegará dominado pelo medo. Essa derrota é garantida. Para a sobrevivência de um grupo que jamais deveria ter chegado ao poder, multiplicam-se agressões a adversários, pululam clamores por golpes contra eventual resultado adverso (para eles).
A excrescência que hoje ocupa a presidência endossa a barbaridade, em repetidos questionamentos ao processo eleitoral – atestado como limpo e transparente em dezenas de aferições – e insinuações covardes de ruptura institucional. Jamais o Brasil chegou tão baixo, nunca o Estado de direito viveu tamanha desvalorização.
A conjugação de irresponsabilidade com apreço pela violência produz vítimas país afora. O tesoureiro do PT morto a tiros por policial bolsonarista em Foz do Iguaçu e o eleitor de Lula assassinado a facadas no Ceará são os casos extremos de uma sanha que se banalizou. Uma grávida que panfletava para Lula foi agredida em São Gonçalo (RJ), assim como um deficiente visual, no metrô em Recife, apenas por ter adesivos de apoio ao petista colados na bolsa.
Autoridades de segurança reagem com lentidão e preguiça na investigação das ocorrências, e a impunidade incentiva novas agressões. O círculo vicioso se intensifica com a proximidade da votação – até porque, o líder da súcia segue patinando nas pesquisas. Seus cúmplices se empenham em tumultuar o processo. Em Porto Alegre, a prefeitura, comandada por um deles, anunciou o fim do passe livre nos ônibus, tradição nos dias de voto há 32 anos, para dificultar a ida dos pobres às urnas.
Receba as colunas de Aydano André Motta no seu e-mail
Veja o que já enviamosO cenário contaminou de medo o dia que deveria ser de máxima liberdade. O Brasil parece caminhar para um confronto de consequências imprevisíveis, e vários homens públicos garantem lugar no lixo da história, ao jogar combustível na fogueira. Aliam-se sem pudor a adoradores do arbítrio, em nomes de projetos pessoais.
Em nossa vacilante democracia, o medo sempre foi arma eficiente. Na volta das eleições diretas pós-ditadura, em 1989, o presidente da poderosa Federação das Indústrias de São Paulo, Mário Amato, previu que 800 mil empresários iriam embora do país, se Luiz Inácio Lula da Silva chegasse à presidência. Em 1994 e 1998, a eventual volta da recém-vencida hiperinflação pavimentou as vitórias de Fernando Henrique Cardoso.
Em 2002, o petista, mesmo à frente das pesquisas, precisou divulgar manifesto de obediência a preceitos econômicos – a “Carta ao povo brasileiro” – para que a elite sossegasse. Em 2006, o então tucano Geraldo Alckmin (ele mesmo, o vice de agora) posou embrulhado numa jaqueta como os macacões dos pilotos de Fórmula 1, com as logos das maiores estatais brasileiras – apenas para negar que planejasse uma privatização maciça.
Mas nada chegou ao paroxismo de 2018. Utilizando-se do crime das fake news disseminadas por redes sociais e aplicativos de mensagens, o deputado de mandatos irrelevantes e declarações bizarras chegou à presidência carregado pelos inimigos do “comunismo” (algo que há muito não mais existe), temerosos de o Brasil virar “uma nova Venezuela”, entre outros absurdos.
No duelo com um professor universitário, político dos mais modernos que temos, venceu a intolerância – e instalou-se a necropolítica. A população armou-se como nunca, a Amazônia sofre destruição inclemente, assim como todos os outros biomas. O país teve das piores gestões na pandemia – mais da metade das quase 700 mil mortes poderiam ter sido evitadas – devido ao descaso governamental. A fome voltou e se alastrou. Um desastre, o pior da história republicana.
Quatro trágicos anos se passaram, até a hora de voltar às urnas. À iminência da derrota, os inquilinos do poder apelam, de novo, para o medo. Espalham novas fake news, agridem, oprimem. Se outros motivos faltassem – e eles estão aí, aos montes –, os brasileiros precisamos varrer o medo e garantir um mínimo de serenidade para enfrentar nossos muitos problemas. É hora de mudar.
Quando o pesadelo passar, poderemos ainda recuperar a delícia de um domingo eleitoral, sob o sol da democracia.