Lanceiros Negros: reconhecimento como heróis quase 200 anos depois de massacre

Escravizados lutaram Revolução Farroupilha com promessa de liberdade, mas foram traídos e acabaram mortos pelas tropas imperiais

Por Micael Olegário | ODS 16 • Publicada em 23 de janeiro de 2024 - 07:49 • Atualizada em 9 de fevereiro de 2024 - 09:53

Lanceiros Negros representados na comemoração da Revolução Farroupilha em Caxias do Sul: reconhecimento recente no estado e inscrição no livro de heróis e heroínas da pátria (Foto: Dani Xu / Prefeitura de Caxias do Sul – 20/09/2023)

Grupo de guerreiros excepcionais, os Lanceiros Negros lutaram em busca da liberdade na Revolução Farroupilha, revolta gaúcha contra o Império do Brasil, mas foram traídos e mortos no “Massacre dos Porongos”, em 1844. Em janeiro de 2024, 180 anos depois, uma lei sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva reconheceu os Lanceiros Negros no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Durante muitos anos, a história oficial da guerra civil mais longa da história do país manteve em silêncio a participação e o protagonismo dos soldados, negros escravizados em sua maioria, que compunham a vanguarda das tropas farroupilhas.

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A Revolução Farroupilha, também conhecida como Revolta dos Farrapos, teve início em 1835, a partir da indignação de elites do Rio Grande do Sul com os altos impostos e com a preferência dada pelo Império do Brasil para a compra do charque (carne salgada e seca ao sol) estrangeiro, em detrimento do que era produzido no estado. Para poder fazer frente às tropas imperiais, as elites republicanas gaúchas, que deflagraram o movimento, recrutaram negros escravizados para lutar com a promessa de liberdade após o final do conflito.

Tardou, mas já é um reconhecimento da verdadeira história do povo negro

Antônio Carlos Côrtes
Escritor, jornalista e advogado

De acordo com o professor João Heitor Silva Macedo, doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a busca pela liberdade levou os Lanceiros Negros a lutar de forma ávida e serem temidos pelos adversários. “Isso fez com que os lanceiros negros tivessem um destaque bélico muito importante, pois, dentro desse contexto de Revolução Farroupilha, eram a vanguarda do exército. Eram eles que vinham na frente e que conseguiam as principais vitórias”, destaca João Heitor, também arqueólogo e pesquisador de relações étnico-raciais do Clube Social Negro Três de Maio, em Santa Maria.

O contingente de Lanceiros Negros começou com 30 membros, variando no final entre 120 e 200 soldados. Embora adotassem ideais republicanos, as elites sul-riograndenses também eram escravocratas e dependiam da manutenção do regime no Brasil. Ao final da guerra, os líderes farroupilhas foram ao Rio de Janeiro tratar do que fazer com os guerreiros negros, a decisão foi entregar o grupo às tropas imperiais. Com isso, na madrugada do dia 14 de novembro de 1844, cerca de 100 negros foram emboscados e assassinados no episódio que ficou conhecido como “Massacre dos Porongos”.

Muitos membros dos Lanceiros Negros, sobreviventes da chacina, foram novamente escravizados. “O acordo era libertar os negros, mas por que não foram libertos? Porque estava em jogo a questão dos escravos no Brasil. Se libertassem aqueles negros, duas centenas de negros, isso seria como um pavio de pólvora em todo o Brasil, exigindo-se a libertação de todos os negros. E os escravocratas da época, entendendo isso, não concordaram”, afirmou o senador Paulo Paim (PT), relator do projeto que reconheceu os guerreiros como heróis nacionais, em discurso no plenário do Senado.

Escritor, jornalista e advogado, Antônio Carlos Côrtes, um dos principais nomes do movimento negro no Rio Grande do Sul, acredita que o reconhecimento dos Lanceiros negros é um caminho para a “terceira abolição” no país. “A primeira abolição de direito foi em 13 de maio de 1888, mas de fato negros continuaram escravizados e jogados na rua da amargura. A segunda veio com leis que deveriam assegurar penalmente sua cidadania, aduzo com políticas afirmativas. A terceira será quando o capitalismo existir de fato diminuindo a desigualdade social e o trabalho escravo em Vinícolas e outras atividades no interior do Brasil não mais existir”, explica Côrtes, que foi presidente da Sociedade Beneficente Floresta Aurora – clube negro mais antigo do país, localizado em Porto Alegre – e, em 2023 se tornou o terceiro negro a chegar à Academia Rio-Grandense de Letras.

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Em seu livro “Alma do Carnaval no Espelho: Pesquisa Psicanalítica”, Antônio Carlos escreve sobre o protagonismo dos Lanceiros Negros e a luta pela preservação dessas história também através da arte. Sobre a lei aprovada pelo Senado e sancionada por Lula, o escritor e advogado é categórico: “Tardou, mas já é um reconhecimento da verdadeira história do povo negro”, afirma o escritor, de 75 anos, mais de 60 com atuação em favor do povo negro brasileiro, principalmente no combate ao trabalho análogo à escravidão em vinícolas do Rio Grande do Sul.

Apagamento e silenciamento da presença negra

“Eu me formei em uma licenciatura em História e nunca tive nenhuma formação que falasse sobre a presença negra no Rio Grande do Sul”, afirma João Heitor. O depoimento do professor e pesquisador não é algo exclusivo. A história dos lanceiros negros e da própria presença de pessoas pretas no Rio Grande do Sul foi durante muito anos silenciada. “Existia até um mito, que vigorou durante mais de um século, que praticamente não existia negros no estado, ou que a escravidão no Rio Grande do Sul tinha sido branca”. Segundo João Heitor, isso começou a mudar a partir de pesquisas nos anos 80 e, principalmente, depois da aprovação da lei 10.639 de 2003, que regulamentou o ensino da história e cultura africana nas escolas do país e consequentemente do Rio Grande do Sul.

Foto colorida do doutor em História João Heitor. João é negro e usa uma camisa preta, ele está sentado com os braços cruzados sobre uma mesa onde estão alguns livros. Ao fundo, parede cinza
João Heitor acredita no reconhecimento dos lanceiros negros como um caminho para a valorização da cultura negra no estado (Foto: Arquivo Pessoal)

Nós passamos por uma história do Rio Grande do Sul que durante mais de um século silenciou a presença negra. Manteve mitos de desigualdade e de discriminação e, a partir desse momento que os Lanceiros Negros são reconhecidos, eu acho que tem outras coisas que devem ser reconhecidas no Rio Grande do Sul

João Heitor Silva Macedo
Doutor em História pela UFSM

“Não lembro de ter ouvido sobre os Lanceiros Negros na escola”, relembra o policial penal Kirion Lopes Martins. Formado em Geografia, ele é o idealizador do Movimento Black RS, perfil no Instagram criado com o objetivo de desconstruir o racismo. “Resgatar a história é fundamental para que possamos ressignificar os nossos símbolos. Quem são os heróis do Brasil? A escola ensinava de uma forma. Homens e mulheres negras tiveram protagonismo na construção da história desse país”, acrescenta Kirion.

Na visão de Kirion, é necessário que a geração atual continue enfrentando o racismo e o apagamento da ancestralidade dos povos afro-brasileiros e indígenas do Rio Grande do Sul. “Estamos em um período de ressignificação da nossa história. Aqui no sul, os Movimentos de Tradições Gaúchas por muitos anos contaram a história do estado inivisibilizando o negro e os indígenas”. Durante todos os anos no estado, as celebrações do aniversário da Revolução Farroupilha reúnem diversas pessoas em desfiles e bailes durante a semana que antecede o dia 20 de setembro.

Apenas recentemente a lembrança dos Lanceiros Negros começou a fazer parte dessas celebrações, o que tem refletido numa mudança de postura do próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). “Nos eventos como o Enarte ou nos festivais de dança farroupilha, a gente já tem visto, nos últimos anos, sempre a presença dos lanceiros negros e uma homenagem à questão de porongos”, explica João Heitor. Agora, com o reconhecimento no Panteão dos Heróis e Heroínas Nacionais, o pesquisador acredita que essa história possa se espalhar e ajude a quebrar uma visão de que o Rio Grande do Sul é a Europa do Brasil.

O fotógrafo e videomaker Jader Pxoto com uma lança em memória aos Lanceiros Negros e fundador do Movimento Black RS, Kirion Lopes: resgate da história (Fotos: Arquivo Pessoal)

Fotógrafo e videomaker, Jaderson Peixoto Correa, 39 anos, conheceu a história do Massacre de Porongos através da música “Manifesto Porongos”, do rapper Rafael Rafuagi. Nascido e criado no Passo das Pedras, na zona norte de Porto Alegre, Jader Pxoto, como é conhecido, resolveu criar um projeto fotográfico para resgatar a história dos Lanceiros Negros e difundí-la.

Através da iniciativa, Jader divulga a história dos guerreiros em escolas e cobra por mais espaço para estes heróis nas lembranças das celebrações farroupilhas. “Visitei algumas escolas com o projeto fotográfico neste período de 2019 a 2023. Reparei um movimento de professores para que esta história seja contada, além dos costumes tradicionais”. De acordo com o fotógrafo, a educação é o principal caminho para combater a invisibilidade que ainda existe sobre o papel dos Lanceiros Negros na história do RS.

Grupo de guerreiros era formado por negros escravizados com a promessa de liberdade após a guerra – Ilustração – Juan Manuel Blanes

Caminho para o reconhecimento da cultura afro-gaúcha

O professor e pesquisador João Heitor destaca que “com esse reconhecimento que vem a partir dos Lanceiros Negros, várias portas estão se abrindo para outros capítulos da história do Rio Grande do Sul”. Entre os exemplos da riqueza da cultura negra no estado, o arqueólogo cita as comunidades quilombolas, os Clubes Sociais Negros e o “sopapo”, instrumento de percussão de origem africana típico da cultura afro-gaúcha. “Nós passamos por uma história do Rio Grande do Sul que durante mais de um século silenciou a presença negra. Manteve mitos de desigualdade e de discriminação e, a partir desse momento que os Lanceiros Negros são reconhecidos, eu acho que tem outras coisas que devem ser reconhecidas no Rio Grande do Sul”, complementa João Heitor.

Kirion Lopes tem opinião semelhante, para ele, as iniciativas de ensino da cultura africana ainda são exceções nos ambientes escolares do estado, mas podem servir para aproximar os mais jovens dessa história. “Esse reconhecimento é importante para que a população negra olhe para o passado com orgulho dos seus ancestrais, que lutaram pela liberdade. E foi por conta deles (Lanceiros Negros) terem resistido que nós tivemos a chance de existir”, ressalta o policial penal e ativista do movimento negro.

Jader Pxoto acrescenta a esse papel das escolas, a força da cultura e da arte, seja nas celebrações farroupilhas, no carnaval ou em outros locais. “Através de diversas artes culturais, mencionamos está traição, exaltando a bravura de quem lutou pra libertar seu povo e família da escravidão”. Segundo o fotógrafo, os Lanceiros Negros devem servir como uma inspiração diária e como exemplos de resistência diante das desigualdades. Não por acaso uma das principais frases utilizadas pelo movimento negro gaúcho e citada por Jader é: “Eles combinaram de nos matar. Nós de não morrer”.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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