O sangue que escorria pelos becos não deixa de jorrar até agora. Num seis de maio ensolarado, de moleira queimando na faixa da orla, noutro canto e esquina da cidade maravilha, um Jacarezinho bem menos animado que aquele da canção do síndico Tim.
Num rejunte de imagens que se acumulavam desde as primeiras horas do dia, pânico e terror, como um presente nada agradável na semana que o país foi do céu ao inferno. Anticlímax: dois dias antes, a final do programa de maior audiência da TV brasileira era atravessada pela perda precoce de Paulo Gustavo, vítima da peste. Morto pela falta da vacina e a oportunidade de ter, como todo brasileiro, legalmente, um cartão com o carimbo para chamar de seu (não como uns e outros que falsificam). Na ocasião, parecia não haver mais de onde tirar choro.
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No conjunto de atos, 28 mortos, configurando a mais letal operação policial da História do Rio. Além das vítimas – 27 civis e um inspetor da Polícia Civil – dois passageiros do metrô, que passava pela estação Triagem, foram atingidos por uma bala e estilhaços de vidro, ficando feridos. Um morador foi atingido no pé, dentro de casa. Aos civis armados e mortos, a justificativa direta do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL): “vagabundos”.
Somados a isso, incontáveis relatos de violações de direitos, trajetória que nunca cessa; multiplica-se a partir de operações policiais que acontecem na capital. Aqui, neste espaço e plataforma, muito já foi noticiado sobre a truculência do Estado, que deveria ser punido pela quebra de ordem; punição e obrigação que deveria ser feita pelo Ministério Público, mas não é.
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Veja o que já enviamosEm uma entrevista concedida a mim para o Maré de Notícias, prevendo o ano de 2023, o coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), Daniel Hirata, comentou sobre a crescente das operações e suas continuidades. “Tudo indica que esse fenômeno de aumento da letalidade e das chacinas vai continuar. E é muito sintomático também que a resposta do governo do estado à maior chacina do Rio, a do Jacarezinho, tenha sido uma operação militarizada a partir do programa Cidade Integrada.”
Na semana de um triste aniversário do episódio, o caso é reavivado pelo pedido de parentes dos 14 mortos, ações na Justiça com pedidos de indenização. Exigem o mínimo: o pagamento de pensões, indenizações por danos morais e reembolso do pagamento de tratamento psicológico, um dos danos que pouco discutimos quando falamos das mais variadas formas de violências existentes.
Ao cantarolar o verso ‘’Jacarezinho, avião’’, sinto um baque. Deixou de ser apenas uma aeronave, mas sim, o número dessa chaga no peito de São Sebastião. Chaga que poderia me ferir por ter parte das características daqueles que morreram, sem poder completar, também nesse seis de maio, mais uma vez, anos de vida. Amanhã, 25.
Não sei por quanto ou até quando, o que vivo é o sentimento conflitante de esperançar um novo ano e lembrar de quem não está, mas poderia. Em clamar por justiça para mim e aos que estão vivos nas favelas e periferias. Por ter fé, não vou morrer tão jovem ou cedo. Ou até que uma bala chegue até meu corpo.
Enquanto vivo, faço da vida um milagre e, Dele, cobro. Parafraseio Chico, subvertendo a ordem: ‘por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir/ a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir/ por me deixar respirar, por me deixar existir/ Deus me pague’’