Relatório da ONU publicado no fim de março aponta que as taxas de desmatamento muito mais baixas em territórios indígenas reconhecidos e protegidos, provando que os indígenas são mesmo legítimos guardiões da floresta. O especial Falas da Terra – que a TV Globo produziu e exibe, nesta segunda, dia 19 de abril, Dia do Índio no calendário nacional – apresenta, através de 21 pessoas das mais diversas etnias, toda a diversidade dos povos indígenas que vivem no Brasil.
A defesa de suas terras e de sua cultura e a preservação da floresta e da natureza são pontos em comum entre esses indígenas, mas Falas da Terra une a voz do cacique Raoni Mektutire, de 89 anos, mais conhecida liderança indígena brasileira, recebido por chefes de estado no mundo inteiro, a do universitário Fêtxawewe Tapuya Guajajara, 22 anos, ativista LGBT+ e líder do Santuário Sagrado dos Pajés em Brasília; a voz do xamã e escritor Davi Kopenawa, de 65, porta-voz dos Ianomâmis, a da médica Myriam Krexu, 32 anos, primeira cirurgiã cardiovascular indígena do Brasil.
[g1_quote author_name=”Aílton Krenak” author_url=”Filósofo, escritor e consultor de Falas da Terra” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É um programa, na forma de abordagem, na narrativa, na estética, que expressa a colaboração dos indígenas na sua produção. Vai soar como um grito neste momento de violência verbal e institucional sistemática contra os povos originários, contra os povos indígenas
[/g1_quote]Consultor e também um dos 21 protagonistas do programa, o filósofo e escritor Aílton Krenak explica que o objetivo foi mostrar que a intenção foi olhar “sem fantasia” sobre a realidade indígena. “Não podem achar que a realidade indígena não tem diversidade de gênero – é só indígena macho e indígena fêmea. Buscamos apresentar toda a diversidade dos povos indígenas: de etnia, de gênero, de língua, de aproximação com os brancos. Os 21 indígenas do Falas da Terra são um retrato dos indígenas feito hoje”, destaca Krenak.
Esse retrato inclui a cantora Djuena Tikuna, a bióloga, artista e drag queen Emerson Uýra, o rapper Kunumi MC, a atriz Lian Gaia, a estilista Dayana Molina, e o Youtuber e influenciador digital Cristian Wairu. “As novas lideranças indígenas estão buscando ocupar espaços que não são os tradicionais. Estamos buscando levar a nossa luta pelos direitos dos povos indígenas, pelos territórios indígenas, para outros espaços: estamos no Instagram, no TikTok, em espaços artísticos. Queremos levar as vozes indígenas a todos os lugares, queremos levar conhecimentos sobre a nossa história a todas as pessoas. E os mais velhos entendem que isso também é importante”, afirma Fêtxawewe Tapuya, filho de pajé e estudante de Ciências Sociais na UnB.
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Veja o que já enviamosOs participantes indígenas do Falas da Terra frisam a importância do programa neste momento particularmente difícil dos povos indígenas. “Apesar de dois artigos constitucionais garantirem os direitos indígenas, nossas terras nunca estiveram sob pressão tão forte de garimpeiros, madeireiros e do agronegócio mais retrógrado”, enfatiza Beto Marubo, líder da Unijava – União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (oeste do Amazonas), região onde acredita-se estar a maior concentração de indígenas isolados do mundo.
[g1_quote author_name=”Fêtxawewe Tapuya Guajajara” author_description=”Estudante de Ciências Sociais e líder da comunidade indígena Santuário dos Pajés” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A juventude indígena também está levando para os povos assuntos que não eram discutidos como a questão LGBT+, a questão do casamento forçado, a questão dos direitos das mães solteiras. As novas lideranças indígenas estão buscando ocupar espaços que não são os tradicionais
[/g1_quote]Para Beto Marubo, o programa é uma oportunidade do Brasil conhecer o Brasil. “Hoje, pessoas de outras partes do mundo sabem mais sobre os povos indígenas brasileiros do que a população do próprio Brasil”, aponta. “Vai ser importante até para o ensino, para todas as crianças verem e conhecerem mais os verdadeiros indígenas. Na escola, parece que os indígenas acabaram com a chegada de Pedro Álvares Cabral ou sumiram com a colonização”, acrescenta Alessandra Korap Munduruku, líder indígena do sudoeste do Pará, vencedora do prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos.
A compreensão e a real percepção do que é a realidade indígena no Brasil é uma preocupação compartilhada pelos participantes do programa. “É preciso acabar com a ideia de que os descendentes de indígenas que estão na cidade, na universidade, em qualquer contexto mais urbano, não são mais indígenas”, destaca Aílton Krenak. “Mesmo entre sociólogos e antropólogos, há muita gente que acha que lugar indígena é na floresta”, adiciona Fêtxawewe Tapuya. “A gente ainda tem muito preconceito para lidar. Um médico indígena não é um ser místico, rudimentar, que só vive na floresta. Um médico indígena é um cientista”, acrescenta Myriam Krexu.
Os guardiões da terra e da floresta
A voz potente de Davi Kopenawa aparece na chamada para o Falas da Terra. “Presta atenção: estão destruindo tudo, derrubando a floresta. Vamos parar e achar solução: sem a floresta, sem a árvore, sem a água, não tem a vida”, afirma o xamã, porta-voz dos Yanomâmis, moradores de sempre ameaçada terra indígena no extremo norte do Brasil. A diversidade exibida no documentário da TV Globo converge para uma unidade na defesa da terra. “A luta para preservar nossa terra e nossa cultura está num momento muito difícil com ameaças permanentes aos territórios indígenas”, afirma Alessandra Korap
A líder Munduruku recorda a situação do território de seu povo. “A Terra Indígena Mundukuru, aqui no Pará, vem sofrendo seguidas invasões de garimpeiros, de madeireiros, de grileiros. O governo não age para impedir. As palavras do governo incentivam a invasão e o desrespeito às terras indígenas. Tudo que era ilegal passa ser legal: mineração em terra indígena passa ser legal, desmatar terra indígena passa a a ser legal”, protesta Alessandra.
[g1_quote author_name=”Beto Marubo” author_description=”Líder da Unijava – União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (AM)” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Os povos indígenas são os maiores defensores da floresta. São nas nossas terras que a floresta está mais bem protegida, onde a natureza está mais preservada – e isso devia ser reconhecido como um valor por todos os brasileiros
[/g1_quote]A situação dos indígenas isolados alarma Beto Marubo. “Os povos isolados, que já são mais vulneráveis, estão ainda mais vulneráveis neste momento porque eles não têm a quem apelar, porque eles não se comunicam. E suas terras estão sofrendo a mesma pressão de interesses econômicos, que desrespeitam os indígenas e a natureza”, afirma o líder da Unijava. “O atual presidente do órgão que deveria cuidar dos interesses dos indígenas transformou a Funai no escritório de apoio aos interesses de grileiros e madeireiros”, acrescenta.
Coordenadora-geral da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira, Telma Taurepang repete o alerta. “Estão tirando a nossa terra, destruindo a nossa floresta, tentando extinguir a nossa língua e a nossa cultura”, denuncia. “Os povos indígenas são os maiores defensores da floresta. São nas nossas terras que a floresta está mais bem protegida, onde a natureza está mais preservada – e isso devia ser reconhecido como um valor por todos os brasileiros”, argumento Beto Marubo.
Aílton Krenak diz ficar preocupado com a situação atual dos povos indígenas, com as ameaças, mas lembra que isso não é uma novidade deste governo. “No fim de 2018, fui perguntado por um jornalista como os indígenas lidariam com as ações anunciadas do novo governo. Respondi que estava preocupado em saber como os brancos lidariam com esse governo porque nós, indígenas, estamos enfrentando esse tipo de ameaça há mais de 500 anos, estamos enfrentando isso desde a primeira missa na praia”, afirma o filósofo e escritor.
Alessandra Karop destaca que queimadas e desmatamento estão em alta em todas as áreas que deveriam ser de preservação. “Os parques, as unidades de conservação, estão sendo invadidos e desmatados – muitas vezes nem tem reação porque o governo, que é o responsável por preservar, permite a ilegalidade. Mas, na terra indígena, não: nós defendemos a floresta, o rio, porque a natureza faz parte de nós. E, quando tem invasão, a gente grita, protesta, enfrenta. Nós estamos na luta para defender nossa terra”, aponta a líder Munduruku.
Guerreiras na vanguarda
Não por acaso, das 21 vozes indígenas do Falas da Terra, mais da metade é feminina. “As mulheres estão ganhando espaço entre as lideranças indígenas. Nós temos um olhar diferente, um olhar mais amplo sobre a sobrevivência dos nossos povos. O homem, quando sai para caçar, pensa apenas no objetivo imediato da caça. A mulher sai à caça, sai pensando nos filhos, pensando na aldeia, pensando no que está ao redor”, analisa Alessandra Karop Munduruku.
[g1_quote author_name=”Miriam Krexu” author_description=”Médica e cirurgiã cardiovascular” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Se a sua luta antirracismo ou o seu feminismo não abraça indígenas, contribui mais ainda para que sejamos invisíveis aos olhos da sociedade
[/g1_quote]Para a líder indígena do Pará, esse olhar garantiu um novo lugar nos povos indígenas. “As mulheres ganharam espaço ao lado dos homens porque eles sabem da nossa preocupação com a sobrevivência do povo, com a nova geração e sabem que esse olhar é importante. Os homens são mais fáceis de serem enganados. As mulheres são mais firmes, sabem olhar para todos os lados”, afirma Alessandra, que divide o programa com outras lideranças femininas indígenas como Telma Taurepang, coordenadora-geral da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira, e Valdelice Guarani Kaiowá, filha do cacique Marcos Veron, assassinado em Mato Grosso do Sul. “Minha luta é para continuar a existir”, afirma no programa.
Primeira mulher pajé, Mapulu Kamayurá relembra os tempos em que isso era impensável para os indígenas. “Fui escolhida pela espiritual para que eu trabalhasse junto com o pajé. Espiritual conversou comigo, falou que me queria pajé, para eu trabalhar junto com os homens. Falei para meu pai (que era pajé) e ele não acreditou. Pensei: como posso aceitar o que espiritual falou para mim, se nem meu pai aceitava?”, recorda Mapulu que, muitas curas depois, diz que hoje o olhar dos indígenas começa a mudar. “Eu curo, pajé homem também cura. Não tem diferença, somos iguais, curamos pessoas”, argumenta Mapulu.
Mas as indígenas, na floresta ou fora dela, enfrentam problemas semelhantes a outras mulheres. “Ser indígena em sua própria terra não deveria ser um desafio. E ser mulher é desafiador sempre, independente da cultura. Mas a dificuldade se agrava quando nós não somos, na maioria das vezes, nem incluídas nas pautas antirracistas ou nas pautas feministas”, comenta a médica Myriam Krexu. “Se a sua luta antirracismo ou o seu feminismo não abraça indígenas, contribui mais ainda para que sejamos invisíveis aos olhos da sociedade”, acrescenta.
Obra de fricção
[g1_quote author_name=”Alessandra Korap Munduruku” author_description=”Líder indígena” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O povo brasileiro ainda desconhece os povos indígenas de seu país. Não entende que são mais de 300 povos, 200 línguas, culturas diferentes. Conhecer a realidade de cada povo indígena, que está vivendo e resistindo no Brasil atual, vai mexer com a cabeça de quem tem essa visão restrita e distante
[/g1_quote]Para a produção de Falas da Terra, a Globo reuniu, além de Aílton Krenak como consultor, a cineasta Graciela Guarani, o artista vizual Ziel Karapató, a documentarista e jornalista Olinda Tupinambá e o cineasta Alberto Alvarez, todos indígenas. E os próprios 21 protagonistas discutiram a participação. “É um programa, na forma de abordagem, na narrativa, na estética, que expressa a colaboração dos indígenas na sua produção. Vai ter um impacto porque será diferente de tudo que já foi visto sobre indígenas na TV aberta. Vai soar como um grito neste momento de violência verbal e institucional sistemática contra os povos originários, contra os povos indígenas”, afirma Krenak.
Desde o começo, a ideia foi valorizar as vozes indígenas, a palavra dos protagonistas do programa. “O mais importante é que teremos vozes indígenas, falando de temas indígenas, de um ponto de vista indígena: acho que isso é histórico mesmo”, aponta Fêtxawewe Tapuya Guajajara. “O povo brasileiro, em geral, ainda desconhece os povos indígenas de seu país – tem uma visão muito limitada. Não entendem que são mais de 300 povos, 200 línguas, culturas diferentes. Conhecer a realidade de cada povo indígena, que está vivendo e resistindo no Brasil atual, vai mexer com a cabeça de quem tem essa visão restrita e distante”, acredita Alessandra Munduruku.
Para Aílton Krenak, o púbico vai receber um programa que fala “com respeito e dignidade” dos povos indígenas, com a diversidade de vozes indígenas. “Vai ser um brilho muito bem vindo para servir de contraponto a violência verbal de todo esse governo. Estamos inaugurando um olhar novo sobre os povos indígenas, a partir do olhar dos próprios indígenas, que, esperamos, seja absorvido aos poucos. Estamos, na verdade, semeando neste momento de muita dureza para colher uma coisa melhor depois”, afirma o escritor.
Beto Marubo vê uma oportunidade para os brasileiros conhecerem a nossa importância social, cultural e ambiental dos indígenas para o país. “Essa importância é reconhecida em muitos lugares mas, muitas vezes, não aqui no Brasil, onde ainda se alimentam ideias de que há ‘pouco índio para muita terra’, de que ‘terra indígena atrasa o desenvolvimento do país’, que ‘ONGs internacionais fazem a cabeça dos índios’ e outros preconceitos”, afirma o líder do Vale do Javari.
Falas da Terra teve direção artística de Antonia Prado, com supervisão de Rafael Dragaud, e roteiro de Malu Vergueiro, com a participação ativa dos indígenas. “Houve muito debate. E nós fomos chegando a essa conclusão: não pode ter só homem e mulher; não pode ter só indígenas nas aldeias, tem que incluir indígenas urbanos; não pode ter só ancião; tem que ter a juventude, a nova geração, quem está na universidade. Não podemos só ter aquele ideal de índio da floresta”, conta Krenak.
Para o filósofo, escritor e ambientalista, houve uma “colaboração corajosa” que ele espera estar “inaugurando um novo tipo de conteúdo” em relação aos povos indígenas. “Falas da Terra é uma peça de fricção, uma fricção inter-étnica entre todos os indígenas que participaram e todos os profissionais não indígenas que trabalharam na produção – de quem teve a ideia, de quem autorizou, de quem esteve lá conosco em todas as discussões”, define Aílton Krenak.