Uma madre assassinada, um levante popular sufocado e a busca para consolidar a unidade em um país de história tão rica quanto controversa. Embora a Independência da Bahia seja tratada, Brasil afora, como um acontecimento à parte da Independência do Brasil, quem é do Estado sabe: foi por aqui, há 200 anos, que aconteceu a verdadeira batalha e consolidação do Brasil enquanto país, não somente uma colônia portuguesa.
Todas as reportagens da série especial 2 de Julho: a verdadeira Independência do Brasil
Foram 16 meses de guerra entre 19 de fevereiro de 1822 e 2 de Julho de 1823. A data virou bairro, feriado, aeroporto e é uma das mais importantes – quiçá a mais – datas da Bahia. Em relação às datas cívicas, com certeza o 2 de Julho é esse dia. A conquista da Independência, por aqui, teve som de corneta e barulho de tiros bombas – foi muito além de um grito às margens do Ipiranga. Em quase um ano e meio de batalhas, foram centenas de mortos. Só com a expulsão final dos portugueses, duzentos atrás, é que a Independência do Brasil foi concluída.
Então por que o 2 de Julho não é uma data nacional? A falta de visibilidade da data no resto do Brasil incomoda os baianos e é tema de reflexão dos historiadores. No evento Salvador Capital Afro, em dezembro, o o cineasta Antonio Olavo argumentou, num discurso inflamado e contundente, que não fazia o menor sentido a Independência da Bahia não ser um feriado nacional, sendo que foi um movimento bem sucedido militarmente e expulsou os portugueses de seu território.
Diretor do documentário ‘1798: a Revolta dos Búzios’ e da série ‘Trajetórias Negras’, Olavo usou a comparação com outros eventos históricos. “A Independência foi basicamente um grito dado por Dom Pedro I. A Inconfidência Mineira foi um movimento rebelde mal sucedido – assim como também a Conjuração Baiana (como também é conhecida a revolta de 1798 na Bahia). Mas por que os dois movimentos de fora do Nordeste são símbolos nacionais e os dois baianos não?”, questionou.
Para o professor e historiador Felipe Fernando, “a fotografia do 2 de Julho não combina com a historiografia oficial do Brasil”: a resistência brasileira às tropas portuguesas na Bahia contou com a participação ativa de mulheres e pessoas negras e indígenas. O professor aponta que, na comparação com a Inconfidência Mineira, do feriado de 21 de Abril, os seus protagonistas foram, em geral, homens brancos, como o próprio Tiradentes, e da elite mineira. “O 2 de Julho teve, entre seus protagonistas, figuras como o francês Pedro Labatut, coronéis do Recôncavo Baiano. Mas também teve nomes como Maria Quitéria, Maria Felipa e Joana Angélica. Figuras e histórias que não nasceram para o protagonismo no projeto de Brasil pensado pelas elites que construíram a história oficial de nosso país”, destaca Felipe Fernando. “Talvez esse seja um dos motivos fundamentais para o esquecimento da Independência da Bahia”, acrescenta.
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A luta pela Independência da Bahia tem uma história tão fascinante quanto contraditória. Diferente do 7 de Setembro, contou com maciça participação popular – e também das elites. Havia uma série de projetos de Brasil em disputa naquele momento e por isso o envolvimento de tantos – e distintos – atores. O professor Felipe Fernando lembra que os combatentes reuniam, por exemplo, desde os negros escravizados que entraram na guerra de olho numa futura alforria até os coronéis da época, mirando menores taxações para suas produções junto à Coroa Portuguesa. Esses projetos não tinham a simpatia da recém-instalada monarquia brasileira, que preferiu valorizar o gesto de Pedro I. “A guerra da Bahia tem esse paradoxo. Ela só foi possível com esse grande contingente popular. Mas essas pessoas ficaram a ver navios e não lograram grande parte dos seus anseios de liberdade e melhores condições de vida”, afirmou o professor e historiador Sérgio Guerra, em entrevista para a Folha de São Paulo.
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Veja o que já enviamosPara os historiadores, não é equivocado de se afirmar que as batalhas na Bahia tiveram um maior apelo popular e de pertencimento do que o próprio 7 de Setembro. Pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa e autora dos livros “Insultos Impressos: a Guerra dos Jornalistas na Independência”, a historiadora Isabel Lustosa afirma que o famoso grito “Independência ou Morte mal foi ouvido pelo povo brasileiro” na ocasião. A historiadora baiana Marianna Teixeira Farias destaca as significativas diferenças entre a declaração às margens do Ipiranga e as batalhas na Bahia, que tiveram até mulheres entre seus protagonistas – inclusive mulheres negras, como Maria Felipa, escravizada liberta que combateu marinheiros portugueses e incendiou navios na Ilha de Itaparica e foi determinante no processo de resistência que antecedeu a contra ofensiva brasileira na guerra.
Presidente da Academia de Ciência da Bahia, Manoel Barral Netto também relaciona a invisibilização do 2 de Julho a um fenômeno contra o Nordeste como um todo nos eixos de poder do país. “Me parece que, na verdade, é uma coisa da falta de visibilidade do Nordeste. Houve uma mortalidade enorme em uma única batalha aqui na Bahia, o equivalente a um ano de guerra”, frisa Barral Neto, lembrando que foram 16 meses de conflito armado entre brasileiros e portugueses, com centenas de mortos. O presidente da academia, médico e pesquisador, argumenta, entretanto, que, na contramão da invisibilidade nacional, houve um movimento, na própria Bahia, para preservar a data. “Preservar o 2 de Julho está dentro do contexto de preservar a cultura baiana e, consequentemente, o que é a Independência para os baianos”, afirma.
Há esperança que mude essa tendência de invisibilidade do 2 de Julho? Pesquisadores acreditam que sim: os entrevistados foram quase unânimes em apontar o quanto a data vem ganhando projeção nacional durante os últimos anos, citando a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos tradicionais festejos em Salvador: em 2022, ainda candidato, e agora, em 2023, já no exercício de seu terceiro mandato. Eles também observaram um maior interesse da mídia no 2 de Julho, o que creditam à chegada de mais jornalistas baianos a redações de veículos do Sudeste.
Marianna Teixeira, pesquisadora de documentos históricos sobre a atuação de Maria Quitéria, destaca que barreiras institucionais relegaram o 2 de Julho ao esquecimento na memória do país e elas ainda existem. “O Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, criado quase duas décadas após a Independência do Brasil, tinha a intenção de escrever uma história do Brasil e da Independência do Brasil centralizada no Sul, no eixo Rio-SP. Como se os grandes acontecimentos tivessem acontecido apenas lá. Mas outros movimentos, no Grão-Pará, Maranhão e Bahia, são tratados como guerrinhas que aconteceram. São história regional e não nacional. Essa disputa acontece desde sempre e ainda acontece”, afirma.
Se a data, apesar de estar ganhando mais visibilidade, ainda é desconhecida para a maioria dos brasileiros, a celebração popular sempre existiu na Bahia, onde o 2 de Julho é uma das datas mais comemoradas. Desde 2007, o governo da Bahia é transferido simbolicamente para Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano, palco, em 25 de junho de 1822, de grande batalha entre brasileiros, que desejavam a Independência e apoiavam o então príncipe regente Dom Pedro, e tropas da administração da província, leais à coroa portuguesa.
Muitos municípios baianos celebram o 2 de Julho, mas a grande festa é em Salvador, onde um cortejo cívico reúne milhares de pessoas. No trajeto, inspirado nas batalhas finais até a fuga das tropas portuguesas no 2 de Julho de 1823, moradores enfeitam suas casas com as cores do Brasil e da Bahia e crianças e adultos se vestem como soldados, índios e heroínas da Independência, como Joana Angélica e Maria Quitéria, e acompanham os carros com as imagens do Caboclo e a Cabocla, que representam os protagonistas do combate aos portugueses. Da Lapinha ao Centro Histórico de Salvador, passando por bairros como Pirajá e Santo Antônio Além do Carmo, essa multidão lembra e ensina, todos os anos, onde foi verdadeiramente consolidada a Independência do Brasil.