“Eu nunca…” é o novo sucesso midiático da gigante dos serviços via streaming Netflix. Originalmente, “Never Have I Ever” estreou no dia 27 de abril e vem numa crescente impressionante. Segundo o aplicativo TV Time, a produção foi a mais assistida no mundo na última semana. Alguns motivos podem justificar o interesse espontâneo do público pela história, como uma protagonista não óbvia: Devi Vishwakumar (Maitreyi Ramakrishnan), uma menina filha de pais indianos de 15 anos tentando encontrar o seu lugar no mundo. Além disso, a série aposta em um trio de amigas formado, além de Devi, pela oriental e teatral Eleanor (Ramona Young), e Fabiola (Lee Rodriguez), uma garota lésbica.
Ao decorrer dos episódios costurados por muito humor, a maioria narrada pelo ex-tenista profissional John McEnroe, é possível acompanhar discussões sobre diversos tabus – a história tem o pontapé inicial com o desejo latente de Devi em iniciar sua vida sexual. Somos apresentados sutilmente a uma nova roupagem cultural e religiosa, dificilmente encontrada em séries do gênero, e tudo isso com uma linguagem que usa e abusa dos clichês adolescentes e românticos, afinal, nos fazer apaixonar é a intenção.
A série tinha tudo para ser a melhor do gênero jovem-adulto (e olha que Sex Education é bem legal). Todos os dramas e personagens soam naturais, na medida certa para nos entreter, para fazer a narrativa andar, exceto um deles: Eric Perkins. “O gordo”.
Quem é Eric?
Muito provavelmente, se você assistiu a série, o nome dele nem tenha soado relevante a ponto de guardá-lo. Eric (Jack Seavor McDonald) é introduzido na série de uma maneira, na mais leve das hipóteses, desleixada. É um alívio cômico óbvio, que usa de gordofobia para tentar provocar graça, com piadas sendo usadas como se ainda estivéssemos nos anos 2000.
Diante de tantas representações de diversidade maravilhosas, mesmo que sem tanta profundidade, a série erra justamente ao virar às costas para ele. Eric não tem história. É como se reduzissem toda a sua trama em ser garoto gordo. Miraram no humor brejeiro e acertaram no desconforto. Em uma de suas poucas cenas, o personagem aparece querendo pegar de graça os restos de comida de uma feira de doces. Em outra, ele apenas vomita, depois de ter comido e bebido muito. Não há muito além disso, o que é muito triste.
Todos merecemos ter uma história
A sensação passada é que o personagem gordo é punido com uma má construção e um estigma doloroso de se carregar. Eric só fala de comida. É como se o mundo da pessoa gorda girasse em torno desse único objetivo. Cadê os sonhos de Eric? Onde se escondem seus monstros e suas inseguranças? De todos os personagens secundários, é dele que temos o menor número de respostas para uma construção mínima.
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Veja o que já enviamos“Eu nunca…” é realmente muito boa. Em 95% do tempo, do seu total de produção, cumpre exatamente a proposta que foi idealizada. É carismática, prende e ensina. Mas por que justo o personagem gordo é um alvo? O único alvo, por assim dizer. Até os personagens que bebem muito da reprodução de estereótipos se desenvolvem e são menos rasos.
Há a esperança que a série cresça na segunda temporada, expandindo um olhar sensível para o personagem. Um olhar humanizado. Que o roteiro abra mão do caminho fácil de retratar a pessoa gorda como alguém grotesca e sem noção, e sim uma pessoa. Eric tem uma história. Pessoas gordas têm suas histórias. E todas elas merecem ser contadas.