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Comunista sim – e daí?

Direita criminaliza sistema político virtualmente extinto e, no Brasil da polarização, transforma em pastiche histérico o debate entre opositores

ODS 16 • Publicada em 22 de dezembro de 2023 - 17:00 • Atualizada em 27 de dezembro de 2023 - 09:45

Entre os muitos venenos do pensamento de direita, na luta da polarização, um dos mais eficazes é a criminalização de palavras e conceitos. Às portas de 2024 (e certamente ano novo adentro), um sistema político virtualmente extinto semeia conflitos viscerais no Fla-Flu que segue instalado no Brasil: o comunismo. Não há, no índex do debate público, palavra mais hedionda. Deveria ser somente folclórico, por surrealista, mas virou sintoma da irracionalidade que se apossou de muitos corações e mentes.

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O termo ganha de goleada, em popularidade e mobilização, de outras definições de mazelas bem mais urgentes para a sociedade: desigualdade, violência, miséria, poluição, pobreza, morte, desequilíbrio, indígena, sem-terra, entre várias outras. Todas ficam ofuscadas pela inútil gritaria que contamina a sociedade inteira. Quem não adere à maluquice, está oprimido pela criminalização semântica.

Ao comentar a aprovação de Flávio Dino para o STF pelo Senado, Lula permitiu-se gracejo sobre o tema. “Segundo a extrema-direita, [Dino] foi o primeiro comunista a assumir a Suprema Corte e eu espero que seja um comunista do bem, que tenha amor, carinho e, sobretudo, que seja justo, porque ali não pode prevalecer apenas a visão ideológica ali”.

O presidente e seus opositores referem-se à famosa entrevista do então governador do Maranhão, em 2019, na qual que ele se assume comunista, “graças a Deus”. Em fala pontilhada bom humor, paciência e sorriso, Dino responde até à provocação emblemática da direita, sobre a suposta contradição entre a posição política e a posse de bens de consumo como o Iphone. “Queremos que todos tenham acesso à tecnologia, essa é a diferença. Alguns querem para poucos, nós queremos que seja para todos. Ser comunista é isso, defender a comunhão, a partilha, justiça social, valores que devem sempre ser atualizados. Acreditamos na solidariedade, na convivência, na perspectiva clara de que a riqueza seja partilhada com mais justiça”, prega, a três afogueados jornalistas. “Somos orgulhosamente utópicos”, arremata.

Não adianta. Nesta lamentável quadra da história, o comunismo terminou igualado à pedofilia, ao canibalismo e a barbáries afins. Vitória da extrema-direita que precisa ser dissolvida para ontem, porque arrasta junto valores civilizatórios essenciais, como cidadania, igualdade de oportunidades, democracia, respeito às diferenças, tolerância, inclusão, estado democrático de direito. Preceitos do “pessoal dos direitos humanos”, para lembrar outro chavão conservador.

Agora, a patologia ultrapassou as fronteiras ao sul, com o bizarro Javier Milei, presidente da Argentina recém-eleito, invocando “ameaças comunistas” a todo instante. Deveria ser apenas ridículo, mas torna-se perigoso pela repetição incessante que transforma em verdade.

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Por aqui, o governo Lula tem tanto de comunista quanto de venusiano. O presidente iniciou a trajetória política como líder sindical, versado no diálogo e no entendimento com os patrões das montadoras do ABC paulista. Até pareceu radical na adolescente eleição de 1989, mas vestiu o traje de “Lulinha paz e amor” para vencer após três derrotas – e nunca mais despiu.

O Brasil está completamente inserido no jogo do capitalismo; pratica resolvidamente a economia de mercado; combate a desigualdade social e a concentração de renda muito menos do que deveria; não tem qualquer intenção nem projeto de ruptura ideológica; respeita a propriedade privada e preserva todos os privilégios de sua elite. Mas a gritaria continua.

Com fervor, inclusive, religioso. Os coronéis da fé (na definição imbatível do pastor/deputado Henrique Vieira) professam o conservadorismo, berrando nos púlpitos uma inexistente “ameaça comunista”. Mas alcançam ouvidos dos fiéis, alimentando o conservadorismo que despreza o estado democrático de direito. É aí que (para usar expressão de outro tempo) mora o perigo.

Comunismo é algo que o Brasil jamais esteve perto de adotar, nem nunca estará. Somos tragicamente capitalistas – e assim será, até a consumação dos séculos.

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O ano termina com meninos negros sendo perseguidos pelos agentes públicos nas praias cariocas, exclusivamente pela cor da pele. Com o aval de políticos que flertam com o eleitorado de extrema-direita, pensando na votação municipal de 2024. Barbárie sob o sol – e a desalentadora certeza de que a democracia por aqui continua seletiva.

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