Combate à covid-19 no Rio: quase R$ 150 milhões para quatro empresas

Testes para coronavírus e luvas para profissionais: 85% dos contratos para aquisição de medicamentos e material hospitalar pelo Governo do Rio de Janeiro para enfrentar pandemia ficaram com quatro empresas (Foto: Maurício Bazílio/SES-RJ)

Compras sob auditoria equivalem a 85% dos contratos para fornecimento de medicamentos e produtos hospitalares da Secretaria Estadual de Saúde

Por Leonardo Iecker | ODS 16ODS 3 • Publicada em 23 de abril de 2020 - 09:45 • Atualizada em 19 de setembro de 2020 - 12:13

Testes para coronavírus e luvas para profissionais: 85% dos contratos para aquisição de medicamentos e material hospitalar pelo Governo do Rio de Janeiro para enfrentar pandemia ficaram com quatro empresas (Foto: Maurício Bazílio/SES-RJ)

No primeiro mês de quarentena no estado do Rio de Janeiro, apenas quatro empresas abocanharam mais de 85% das contratações para fornecimento de medicamentos e produtos hospitalares básicos à Secretaria Estadual de Saúde (SES). O levantamento foi feito com base na lista de 60 processos administrativos submetidos a auditoria por portaria publicada na edição da última sexta-feira (17) do Diário Oficial do Estado, após a sequência de denúncias de contratações irregulares realizadas pelo ex-subsecretário-executivo da pasta, Gabriell Neves.

Alegando urgência excepcional por conta da pandemia, a totalidade desses processos dispensou o procedimento licitatório regular, optando por contratar diretamente com cada empresa. Mas, de uma lista de quase duas mil fornecedores cadastrados para a venda de medicamentos e produtos hospitalares ao estado do Rio, chama a atenção que a gestão do então subsecretário preferiu convocar, sem quaisquer justificativas, quase que exclusivamente apenas quatro empresas, a Carioca Medicamentos e Material Médico Eireli, a Speed Século XXI Distribuidora de Produtos e Serviços Hospitalares, a Avante Brasil e Comércio Eireli e a Sogamax Distribuidora e Produtos Farmacêuticos

A reportagem entrou em contato com as quatro empresas e com a SES, mas não obteve retorno.

Juntas, as quatro já receberam R$ 147.998.447,50 em contratos, valor equivalente a 85% de tudo o que o estado já gastou desde o início de março em medicamentos e produtos hospitalares básicos para o combate à pandemia (R$ 174.096.970,50). Mesmo se forem contabilizados os gastos com ventiladores pulmonares, testes rápidos da covid-19 e até com a contratação de hospitais de campanha – produtos que as quatro empresas não oferecem -, ainda assim elas seriam responsáveis por cerca de 28% de tudo o que já foi despendido pela máquina pública estadual no esforço contra o coronavírus.

Esta conta não inclui a contratação direta do Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (IABAS) para a construção de 1.400 leitos em hospitais de campanha, processo que está temporariamente suspenso em razão da polêmica em torno da dispensa da licitação e do alto valor do contrato, de R$ 835.772.409,78. Revelado por reportagens veiculadas pela TV Globo e pelo blog do jornalista Rubem Berta, este episódio culminou na exoneração de Gabriell Neves, que tentara ocultar o contrato com o IABAS, na segunda, dia 20/4.

Convocação a dedo das quatro empresas

Dos 31 procedimentos de contratação já concluídos, em 21 deles aparecem todas as quatro – ou ao menos três delas. A convocação para a apresentação de proposta ocorre geralmente por e-mail enviado pela SES diretamente a elas, contendo os itens a serem adquiridos pelo Poder Público e os requisitos para a contratação. Não há qualquer justificativa para a escolha específica destas empresas. Mesmo quando mais fornecedores também são convocados, ainda assim apenas as quatro – ou três delas – apresentam as propostas. Veja um exemplo da convocação:

E essa união do grupo rende frutos. No Processo SEI n. 080001/005552/2020, por exemplo, a Speed Século XXI havia oferecido o valor unitário mais baixo para a oferta de 1,8 milhão de caixas de luvas descartáveis (R$ 26,50), conseguindo obter a contratação pelo valor final de R$ 48.495.000,00. 

Logo em seguida, contudo, a empresa comunica a desistência da oferta alegando baixa margem de lucro. A Speed, que já foi multada em outubro passado pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA) por irregularidades também no fornecimento de produtos e teve seu certificado de boas práticas negado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em fevereiro, alegara margens de lucro muito estreitas para continuar operando. 

A SES então opta por contratar com a Carioca, que ficara em segundo lugar neste item. Esta, por sua vez, afirma que só fecharia o contrato se o preço unitário fosse o seu, e não o da Speed, de R$ 27,30 por caixa de luva. A exigência foi prontamente acatada por Gabriell Neves devido à “urgência da aquisição”.

 

A aceitação da exigência da Carioca pela SES sem qualquer negociação prévia resultou em um acréscimo aos cofres públicos de R$ 1.464.000,00.

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Autorização de despesa antes de proposta

Outro fato presente em algumas das contratações relacionadas às quatro empresas é a concessão da autorização da despesa antes mesmo da própria apresentação da proposta pelas fornecedoras. No Processo SEI 080001/006694/2020, por exemplo, a Avante, empresa que ao final sagrou-se vencedora, enviou e-mail com sua proposta de preços de medicamentos para ao funcionário da SES às 14h32 do dia 24.03.2020.

Após o reconhecimento da proposta da Avante como vencedora, é dada autorização de despesa no valor global ofertado pela fornecedora, que fora de R$ 2.569.750,00. Neste caso, contudo, a nota de autorização de despesa foi dada no dia 21.03.2020, e exatamente no valor apresentado pela Avante.

Empresa denunciada por fraudes em licitações

Maior fornecedora de insumos básicos para o estado do Rio durante a pandemia, com mais de R$ 80 milhões contratados, a Carioca Medicamentos tem um histórico conturbado no relacionamento com o Poder Público. Em abril de 2017, a empresa virou ré em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro (MP-RJ) para investigar denúncias de fraude em licitações envolvendo a Biotech Humana Organização Social de Saúde, então mantenedora do Hospital Municipal Pedro II. 

Segundo a ação,  a então Distribuidora BK (antiga denominação da Carioca) teria desviado R$ 4.499.661,03 dos cofres da Prefeitura do Rio de Janeiro por meio de esquema de superfaturamento de remédios vendidos ao hospital, em valores até 394% superiores aos valores do registro de preços da Secretaria Municipal de Saúde. Além disso, aproximadamente R$ 1 milhão teria sido sacado na boca do caixa de forma pulverizada pelo antigo sócio da Carioca, Pietro Miranda Coccaro. 

Com passagens pela polícia por crime de trânsito e agressão à mulher, Pietro Coccaro nunca foi localizado para responder à ação do MP. A citação processual para apresentar defesa no processo foi recebida apenas por Claudio Wagner Ribeiro da Silva, que atualmente figura como sócio único da Carioca e, nesta condição, assina todos os contratos de fornecimento com o estado do Rio. Apesar de devidamente citada, a empresa nunca juntou defesa na ação civil pública.

Empresas omitem dívida com estado

Em regra, procedimentos licitatórios exigem como pré-requisito para habilitar-se como proponente a comprovação ausência de débitos com o ente federativo licitante. No caso das contratações diretas fundamentadas na situação excepcional da pandemia de covid-19, contudo, isso deixa de ser a regra, ao menos no que se refere ao governo estadual do Rio.

Duas das quatro maiores fornecedoras do estado apresentam atualmente passivos fiscais milionários com a Administração Pública relacionados ao não pagamento de ICMS. Segundo a Procuradoria Geral do Estado do Rio (PGE-RJ), a Carioca, maior fornecedora, deve atualmente R$ 2.828.545,62, enquanto a Sogamax, por sua vez, tem débitos de R$ 1.246.069,21. 

Nos processos em que se sagram vencedoras, ambas chegam a apresentar certidão negativas de débitos junto à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e aos municípios em que têm sede, mas nada apresentam em relação justamente ao estado do Rio. Nos processos com outras fornecedoras, contudo, a certidão é juntada regularmente ao autos, como se vê, por exemplo, no caso da empresa Lexmed.

Ausência de pesquisa de preços

Em boa parte dos processos analisados, o então subsecretário Gabriell Neves vale-se de uma brecha na lei federal que regulamenta as medidas contra o coronavírus para não realizar pesquisa prévia de mercado em torno dos itens a serem adquiridos pela máquina pública, tendo como justificativa a urgência do contexto atual. O texto geralmente é o que se segue:

Para além da dispensa de pesquisa de mercado, que teria como objetivo justamente evitar que os cofres públicos efetuem despesas além do estritamente necessário, Neves frequentemente determinava elevar significativamente e sem maior explicação a quantidade de itens a serem adquiridos nas contratações, como no caso abaixo:

Em seguida, sem qualquer parâmetro de comparação, as empresas apresentam livremente suas propostas, às vezes com indícios de superfaturamento. No caso do Processo SEI n. 080001/005552/2020, o mapa de preços propostos pelas fornecedoras para o item “óculos de proteção” mostrou preços unitários entre R$ 55 e R$ 59,74, tendo a Sogamax apresentado o menor preço e, consequentemente, sendo contratada por R$ 16,5 milhões.

Uma rápida pesquisa no portal de Compras do governo estadual, contudo, indica que o mesmo produto (ID 79900) já fora orçado, no passado não muito distante, com valor unitário de R$ 2,20 e R$ 4,40. Caso apenas este último o valor tivesse sido mantido na contratação deste ano, a economia para os cofres públicos seria de R$ 15.180.000,00. Na internet, óculos com características semelhantes custam em torno de R$ 6,80.

No próprio caso em que a Carioca Medicamentos impõe seu preço à SES para a venda de luvas após a desistência da Speed, mencionado acima, o valor unitário da caixa com 100 itens ficara ajustado em R$ 27,30 nos tamanhos P, M e G, ou R$ 0,27 por luva. Contudo, na Ata de Registro de Preços n.o 195/2019, ajustada com a própria Carioca em dezembro passado, os preços unitários para os tamanhos M e G eram, respectivamente, de R$ 0,15 e R$ 0,13 por luva (Processo SEI n. 270042/000191/2020). 

Ou seja, a mesma empresa conseguiu, em três meses, elevar o valor unitário em 12 centavos por item, abocanhando R$ 21.960.000,00 a mais do que deveria, caso a SES tivesse seguido sua própria ata de preços com a fornecedora. 

Outro indício de superfaturamento foi revelado pelo blog do jornalista Rubem Berta. Conforme relata a reportagem, no processo de contratação do antibiótico claritromicina, de 500mg e injetável, uma pesquisa de preço realizadas pela Fundação Saúde orçou o produto em R$ 30,00. No Processo SEI n. 080001/006692/2020, entretanto, a Speed Século XXI apresentou proposta quatro vezes maior, de R$ 120,00, sagrando-se vencedora e recebendo contrato de R$ 12.000.000,00.

A reportagem entrou em contato com as quatro empresas e com a SES, mas não obteve retorno.

Foram pesquisados para a reportagem todos os processos listados pela Portaria SUBCG/SES n.o 11 de 16 de abril de 2020, publicada na edição de 17 de abril de 2020 do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. São eles:

SEI-080001/005552/2020; – SEI-080001/007067/2020; – SEI-080001/007015/2020; – SEI 080001/006569/2020; – SEI-80001/007047/2020; – SEI 80001/008185/2020; – SEI-080001/008183/2020; – SEI080001/006799/2020; – SEI-080001/006800/2020; – SEI080001/006802/2020; – SEI-080001/006692/2020; – SEI080001/006693/2020; – SEI-080001/006694/2020; – SEI080001/006481/2020; – SEI-080001/006695/2020; – SEI080001/006000/2020; – SEI-080001/007398/2020; – SEI080001/007401/2020; – SEI-080001/008155/2020; – SEI080001/008164/2020; – SEI-080001/005899/2020; – SEI080001/006738/2020; – SEI-080001/006760/2020; – SEI080001/006792/2020; – SEI-080001/006794/2020; – SEI080001/006812/2020; – SEI-080001/007710/2020; – SEI080001/007713/2020; – SEI-080001/007714/2020; – SEI080001/007715/2020; – SEI-080001/007745/2020; – SEI080001/007788/2020; – SEI-080001/007115/2020; – SEI080001/003737/2020; – SEI-080001/007238/2020; – SEI080001/007262/2020; – SEI-080001/007270/2020; – SEI080001/007272/2020; – SEI-080001/007186/2020; – SEI080001/007407/2020; – SEI-080001/007439/2020; – SEI080001/007447/2020; – SEI-080001/007693/2020; – SEI080001/007700/2020; – SEI-080001/007680/2020; – SEI080001/007503/2020; – SEI-080001/007502/2020; – SEI080001/007710/2020; – SEI-080001/007781/2020; – SEI080001/007735/2020; – SEI-080001/007785/2020; – SEI080001/007786/2020; – SEI-080001/007788/2020; – SEI080001/007606/2020; – SEI-080001/007792/2020; – SEI080001/007836/2020; – SEI-080001/006971/2020;  –       SEI080001/006399/2020; – SEI-080001/007073/2020, – SEI-080001/003479/2020.

Leonardo Iecker

Ex-repórter nos jornais O Globo e Folha de S.Paulo, é formado em jornalismo pela PUC-RJ e em Direito pela Faculdade Nacional de Direito/UFRJ. Tem mestrado em História pela UFF e está concluindo outro mestrado em Direito Internacional pela UERJ. Atualmente trabalha em escritório de advocacia, embora nunca tenha abandonado o olhar de jornalista

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