Brumadinho: polícia comprova fraude em assinatura de enfermeira

Usada em esquema para desviar benefícios destinados às vítimas do rompimento da barragem da Vale, Aline Gonçalves vive calvário desde 2019

Por Gabi Coelho | ODS 16 • Publicada em 1 de novembro de 2024 - 10:01 • Atualizada em 4 de novembro de 2024 - 18:09

Familiares e amigos oram pelas vítimas da tragédia de Brumadinho. Foto Mauro Pimentel/AFP

A polícia de Minas Gerais comprovou a fraude nos documentos referentes à concessão de benefícios a famílias de vítimas da tragédia do rompimento da barragem de Córrego do Feijão, que deixou 270 mortos, em Brumadinho, em 2019. A discrepância nas assinaturas atribuídas à enfermeira Aline Flávia Leite Gonçalves, denunciada pelo #Colabora, agora é confirmada pelo laudo pericial emitido pela 5ª Delegacia de Polícia Civil de Brumadinho. Segundo o resultado do exame grafotécnico realizado em oito documentos, as assinaturas apresentaram divergências relevantes quando comparadas ao padrão gráfico verdadeiro da enfermeira. 

“As rubricas comprovadas nos documentos de fls. 12 a 19 apresentam divergências morfogênicas e estruturais incompatíveis com o padrão gráfico específico de Aline Flavia Leite Gonçalves”, destacou a perita responsável, Luciana Penna Resende de Carvalho. As evidências comprovam que houve falsificação​.

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Em maio de 2019, dois meses após o rompimento, enfermeiras de Unidades Básicas de Saúde (UBS) foram autorizadas a emitir comprovantes de endereço para moradores receberem o auxílio emergencial, hoje chamado Programa de Transferência de Renda (PTR). Aline, que trabalhou no Programa Saúde da Família (PSF) em Brumadinho, começou a identificar um padrão suspeito: benefícios que deveriam ser destinados às vítimas locais eram desviados para pessoas sem vínculo com a cidade. 

O laudo também registra que algumas assinaturas nos documentos solicitados obedecem a uma manipulação seletiva e coordenada. O detalhe, segundo os peritos, sugere que o esquema foi planejado com assinaturas autênticas misturadas a falsificações para dificultar a identificação.

Moradora na cidade desde 2011, Aline relembra que só constatou as falsificações ao ser questionada por seus chefes e pela própria Vale. E foi apontada como culpada, sem direito a defesa. “No dia do laudo grafotécnico, foi uma confusão. Eram 30 páginas para copiar entre cursivo e não cursivo, cheguei a ter inflamação nos nervos da mão direita”, relata. “Depois da fraude, fiquei mais de um ano sem trabalhar, comecei a tomar tranquilizantes”.

Desde que Aline fez as primeiras denúncias em 2019, ela enfrenta medo e insegurança. Em 2019, me vi no meio de uma tempestade emocional, em uma cidade devastada pela dor, onde o caos abriu espaço para situações que jamais imaginei presenciar. Eu me sentia impotente, cercada por pessoas que viam na tragédia uma oportunidade de ganho, enquanto os verdadeiros atingidos lutavam para sobreviver ao trauma. Meus pais, assustados, imploraram para que saísse de Brumadinho. Eles temiam pela minha segurança, e com razão.

Aline perdeu os pais na pandemia de covid-19, em 2020, e, em meio ao luto, decidiu sair de Brumadinho para proteger a si mesma e aos filhos. O afastamento, no entanto, foi doloroso: Deixei meus filhos para trás, uma das decisões mais dolorosas que já tomei. Não tenho medo só por mim, mas também por eles. As ameaças, diretas e indiretas, o peso da responsabilidade, tudo se tornou insuportável. Tive que me reconstruir aos poucos, entre crises de pânico e noites insones, lutando para encontrar coragem onde só havia escuridão”.

Mesmo afastada fisicamente, Aline sustenta as denúncias. Ela afirma que a fraude é apenas mais um exemplo de como o sistema vem sendo manipulado. “A falsificação da minha assinatura, especialmente em um contexto tão sensível como a pós-tragédia, aponta para interesses maiores que buscam se aproveitar do caos”, explica. Segundo a enfermeira, há um padrão de manipulação que favorece grupos com poder e influência, desviando o foco das reparações.

Aline espera que o laudo pericial e as provas agora apresentadas não sejam apenas mais um documento no processo, mas sirvam para responsabilizar os envolvidos. “Minha expectativa é simples: que a verdade prevaleça, independentemente de quem está envolvido ou de quanto dinheiro. Não se trata apenas de expor fraudes, mas de fazer justiça para os verdadeiros atingidos – as famílias que perderam entes queridos e a população local de Brumadinho”. 

Em janeiro, o #Colabora publicou reportagem, na qual Aline apresentou evidências visuais, comparando sua assinatura real com as que estão nos documentos. Na imagem divulgada, era visível a discrepância — à esquerda, a assinatura falsificada em um formulário oficial, e à direita, a assinatura real dela registrada em um caderno.

À esquerda, em destaque, a letra atribuída a Aline; e na folha branca, a verdadeira caligrafia da enfermeira. Reprodução
À esquerda, em destaque, a letra atribuída a Aline; e na folha branca, a verdadeira caligrafia da enfermeira. Reprodução

A assessoria de comunicação da Vale, da Prefeitura de Brumadinho e da Polícia Civil no município não deram retorno à reportagem. O espaço segue aberto para eventuais pronunciamentos.

Gabi Coelho

Jornalista, empreendedora, diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e conselheira da Inova.aê. Dedica-se a impulsionar uma comunicação comprometida com a sociedade, através do jornalismo e do ativismo. Tem experiência em mídias independentes e tradicionais, como Estadão Verifica, Projeto Comprova, Globo Minas, Voz das Comunidades, Ponte Jornalismo, Projeto Colabora, Revista Azmina e outros. Foi jurada do prêmio Vladimir Herzog. Teve também experiências internacionais. Em 2018, foi uma das oito jornalistas brasileiras das favelas e periferias que participaram de intercâmbio em Medellín, Colômbia, conectando-se com mídias independentes e participando de workshops e exposições no Festival Gabriel García Márquez. Em 2023, participou do intercâmbio IVLP nos Estados Unidos, no Programa Edward R. Murrow para Jornalistas – Pesquisa e Investigação, juntamente com profissionais brasileiros, moçambicanos e portugueses.

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