(Felipe Betim*) – “Integrar para não entregar”. Sob esse lema nacionalista contra uma suposta ameaça estrangeira, milhares de migrantes partiram rumo à Amazônia no início dos anos 1970 em busca da prosperidade prometida pelo governo militar.
Naquela época, agricultores que viviam em meio à pobreza no Sul do Brasil enxergavam na propaganda da ditadura um novo horizonte, onde diziam que a terra era farta e acessível — até de graça — numa região inexplorada do Centro-Oeste.
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“Eu sou catarinense, criado lá no Sul e estava excluído financeiramente e socialmente em geral”, conta Elmo Leitzke, hoje um rico fazendeiro e dono da fazenda Minuano, com 7.000 hectares — o equivalente a 7.000 campos de futebol — em Sinop, no Mato Grosso. “Era comum procurar novas fronteiras agrícolas, e elas estavam todas no Centro-Oeste”.
Assim começava um movimento massivo da colonização de uma área na transição entre o Cerrado e a Amazônia. E assim também foram dados os primeiros passos em direção a um modelo de extração e exploração que traduz como o país ainda hoje enxerga a floresta: um empecilho ao progresso, que precisa ser tirado do caminho da produção agrícola.
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Veja o que já enviamos“Até 1975, a floresta estava praticamente intacta”, afirmou o historiador ambiental José Augusto Pádua, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Então, nós temos que entender o movimento [migratório] a partir daí”.
Essa intrincada história e seus personagens fazem parte do nosso primeiro podcast, Amazônia Ocupada, uma série de reportagens em áudio lançada nesta quinta-feira, dia 15, pelo Diálogo Chino, em parceria com a Trovão Mídia. Em cinco episódios, mostramos como a maior floresta do mundo foi colonizada para a exploração de commodities.
BR-163, a rodovia ‘espinha de peixe’
O ouvinte viajará pela rodovia BR-163 — um projeto de infraestrutura do governo militar que buscava impulsionar a ocupação da Amazônia — para entender como a soja, a pecuária, o garimpo e a extração de madeira se estabeleceram na região.
A construção da rodovia, que corta o Brasil de norte a sul por mais de 3,5 mil quilômetros, teve um papel fundamental no processo de ocupação, uma vez que desse eixo viário é que foram surgindo vilas, que se tornaram grandes cidades.
“Imagina uma espinha de peixe”, resume Ilson Redivo, presidente do Sindicato Rural de Sinop e vice-presidente Norte da Aprosoja. “O que alimenta uma espinha de peixe é a coluna central. Essa coluna central é a BR-163”.
Os resultados da colonização desenfreada são sentidos hoje, com a emergência de conflitos fundiários, o deslocamento e mortes de populações tradicionais e o desmatamento da Amazônia, que registra as maiores taxas dos últimos 15 anos.
“Quando abriram a BR-163, morreu muita gente, principalmente o povo Panará”, contou Krekreansã Panará, liderança indígena de uma das etnias deslocadas de seu território original para a construção da rodovia. Krekreansã explica que por conta do contato com doenças recém-introduzidas, como o sarampo, apenas cerca de 80 indivíduos sobreviveram e foram levados para o Parque Indígena do Xingu.
Sinop, capital da soja
Município do norte de Mato Grosso, Sinop foi um dos primeiros destinos dos imigrantes sulistas, e, portanto, é a primeira parada do podcast. Ao longo dos últimos 50 anos, a cidade tornou-se o epicentro nacional da produção de soja, hoje o principal produto de exportação do agronegócio brasileiro.
Com o incentivo do governo e a ocupação de seus biomas para a monocultura, o Brasil se tornou o maior produtor e exportador de soja do mundo, com mais de 60% de sua produção sendo vendida para outros países, sobretudo a China, segundo dados do comércio exterior. Se o Mato Grosso fosse uma nação, seria o terceiro maior produtor de soja do mundo, atrás do próprio Brasil e dos Estados Unidos.
Sinop é sigla para Sociedade Imobiliária no Noroeste do Paraná, a empresa que começou a desmatar a floresta tropical e fundou a cidade naquela área. Hoje, ela abriga 150 mil hectares de lavoura, segundo dados do IBGE de 2020.
Embora seja um município rural, Sinop não tem aparência de cidade de interior. No centro urbano, circulam carros importados em avenidas bem asfaltadas. Há shoppings, lojas de grife e restaurantes caros normalmente encontrados em grandes metrópoles. Outdoors de novos empreendimentos imobiliários, destinados à elite do agronegócio que vive ali, fazem parte da paisagem urbana.
O município se consolidou como um importante centro de abastecimento de produtos, serviços e oportunidades da região. De acordo com dados do IBGE, cerca de 150 mil pessoas vivem em Sinop, que registrou um PIB per capita de mais de R$ 46 mil em 2019, superior à média nacional daquele ano — de cerca de R$ 35 mil.
Até chegar a esse ponto, Sinop viveu outros ciclos produtivos. O primeiro, que coincidiu com a fundação da cidade, foi o da extração e venda da madeira. “A extração da madeira é que pagava as contas do início da mecanização agrícola [como era chamado o desmatamento] que eu fazia na época. Era comum se procurar novas fronteiras agrícolas”, conta Leitzke.
Uma vez abertas as cidades, a região viveu o ciclo da pecuária, uma forma de ocupar esses espaços abertos com baixo custo. E, por último, nas últimas três décadas, veio o boom da soja e do milho.
Toda essa pujança atraiu o capital multinacional das traders, como Bunge e Cargill, dos Estados Unidos, a chinesa Cofco e a brasileira Amaggi. São essas empresas que fazem a intermediação entre agricultores e compradores, além de terem trazido créditos, insumos e técnicas que impulsionam a monocultura brasileira.
Contraditoriamente, a propaganda difundida pelo governo militar afirmava que a Amazônia era alvo da “cobiça estrangeira”, sobretudo dos Estados Unidos. A colonização do bioma serviria, portanto, para defender o território de uma ameaça iminente — uma visão nacionalista que encontra ecos até hoje na política.
“Existia uma grande pressão internacional para que a Amazônia não fosse brasileira, que ela fosse pertencer ao mundo”, lembra Leitzke. “A ideia era botar o povo brasileiro na Amazônia”.
Ouça aqui o primeiro episódio de Amazônia Ocupada. O segundo episódio e o artigo que o acompanha serão lançados na próxima segunda-feira, dia 19.
*Felipe Betim é jornalista, trabalhou por oito anos no El Pais, vive em São Paulo e escreve sobre política, meio ambiente, segurança pública e direitos humanos