Este texto reflete uma das experiências que vivi há algumas semanas, quando me coloquei a escutar o que dizem as águas. Não, não era uma premonição do que viria a acontecer no Rio Grande do Sul, ainda que também remontasse uma tragédia ambiental. Estava eu no Rio Doce, que banha os estados Minas Gerais e o Espírito Santo. Rio que foi acometido pelo, até então, maior desastre ambiental do país, o rompimento da barragem em Mariana.
Leu essa? Documentário joga luz sobre terrorismo de barragem em Minas Gerais
Imerso pela vivência capitaneada pelo designer e curador – no sentido literal – Ronaldo Fraga, junto aos irmãos Buriti, Pablo e Thiago, criadores da iniciativa Que Visu – com financiamento e apoio institucional da Fundação Renova, entidade responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados -, o projeto se destina a transmitir o desenvolvimento das comunidades de Regência Augusta e Povoação, apesar das adversidades.
Receba as colunas de Edu Carvalho no seu e-mail
Veja o que já enviamosA Vivência Foz do Rio Doce recoloca e ressignifica, de maneira objetiva, a vida das pessoas impactadas pelos dejetos que nunca mais poderão sair daquele lugar. “A tragédia está instalada. Agora: de que forma isso pode ser reconstruído? E como vai ser o eco no coração de cada um aqui?”, questiona Ronaldo, uma espécie de Mário de Andrade da atualidade.
Nesta fratura exposta que é o rio em regeneração, ver e enxergar. Aliás, ter o que enxergar, muito além do que se vê. “Para entender o Brasil, é preciso olhá-lo com olhos de poeta”, afirma o estilista, que em sua primeira vez no local, encantou-se com a natureza e seu vigor. “Se você não sabe que a água está contaminada, você olha pro rio e diz ‘impressionante’. As águas do Brasil são tão vilipendiadas, mas resistem, apesar do Brasil. Às vezes é preciso ir no fundo do poço. Essa região foi no fundo do poço com a tragédia, e vem o garimpo, a contaminação com o agronegócio, vem o esgoto doméstico Brasil afora; a natureza vai regenerar”.
Assim, Ronaldo uniu-se a dupla de irmãos há cerca de dois anos para formar um trio que apreenderia as qualidades já existentes em cada morador das vilas atingidas, promovendo o destino como um local possível, além de movimentar a economia local e preservar a riqueza histórica da região.
“O trabalho por aqui se torna único, já que estamos trabalhando e criando uma relação com pessoas que tiveram seu modo de vida completamente transformado com o desastre da barragem. Além desses territórios sofrerem, antes da lama, com as dificuldades de qualidade de vida envolvendo a gestão pública brasileira que todos conhecem, soma-se a isso a tragédia devastadora que aconteceu. É um peso duplo, consequentemente uma responsabilidade dupla”, comenta Pablo Buriti, coordenador do projeto.
Ele e o irmão, Thiago, já desenvolvem algo parecido na atividade turística com base na economia criativa na região do Nordeste. Na Paraíba, onde moram, fazem incursões no Cariri Paraibano; e também na Chapada do Araripe, no Ceará.
A troca com os moradores: o ensinamento das águas
Para a imersão, um garimpo de personagens e momentos, onde é oferecido capacitação e treinamentos, entendendo os potenciais dos micro e pequenos empreendedores.
Como Tunay, jovem responsável pelo meliponário Watu, que poderia ter seu nome como o da palavra resiliência. Ele é oriundo de uma família de pescadores impossibilitados de exercerem suas atividades. Ali, muitos pescadores se viram descobrindo novos talentos e habilidades. Foi o caso do morador de Regência, que concentrou o trabalho, antes com a pesca, em experiências ligadas ao mel de abelhas nativas sem ferrão.
No Meliponário Watu, os visitantes têm a oportunidade de conhecer todo o processo de produção do mel, desde as técnicas de criação de abelhas nativas até a degustação do produto final. Durante a visita, marcada por saberes e tradições de antigas gerações, é possível não só se conectar com a natureza e suas peculiaridades, como também vivenciar diretamente a economia sustentável que contribui para a reconstrução e fortalecimento da comunidade.
Hoje, Tunay se vê como ponte para si e tantos moradores. O quintal da casa já não suporta mais as caixinhas onde vivem as abelhas, e um anexo começou a ser construído. A princípio, seria uma lan-house, como forma de colocar Regência no mapa pela web, mas a partir da repercussão do trabalho, que impacta até as crianças que estudam na escola da região, teve um final diferente: o local se tornará um espaço ampliado, com brinquedoteca e parte educativa sobre as abelhas. ‘’Eu percebi que tinha de conectar os moradores e a mim mesmo com nossa ancestralidade, ao invés de ligar todos aqui com o mundo’’.
‘’É impossível ser raso. É preciso ter um relacionamento por trás disso, com todos. O mais gratificante é que a gente consegue notar a felicidade deles com o primeiro projeto, porque a gente sempre teve muito carinho, sempre olhou no fundo dos olhos das pessoas e sempre escutou. Eles ficam felizes e agradecem, porque entendem que podem continuar’’, diz Thiago Buriti.
Digerindo o que as águas dizem
Para um filho de uma cozinheira, visitar, logo de início, as Paneleiras de Goiabeiras, onde tivemos uma visita guiada pela produção com relatos das artesãs, me toca só de lembrar e escrever. Na memória, abraçar Berenice, a artista das panelas com mais de 40 anos de trabalhos, e suas mãos sujas de tintas, cheias de suor pela temperatura da lenha, onde se pigmenta o produto.
Ou ao reviver, em fotos, a apresentação da peça “O Auto do Caboclo Bernardo” apresentada pela Cia. de Artes Regência Augusta; o jantar no restaurante mexicano Raízes, a festa na Casa de Cultura de Regência com apresentação luxuosa de Silvia Machete; o Projeto Tilápia, iniciativa das mulheres da pesca de Povoação; a guiagem na Fazenda São Luiz e, no fim, o Reisado, com feira criativa das artesãs e gastronomia local.
E a última cena, coroando tudo: uma placa escrita ‘’pra quem tem fé, a vida nunca tem fim’’.
É preciso dizer mais?