Transição energética com fonte limpa e acessível aos mais vulneráveis

Maria Sophia, neta do assentado Antônio Hermínio, e as placas solares de sua casa no assentamento Novo Horizonte, na zona rural de Várzea, na Paraíba.: transição energética (Foto: Arquivo pessoal)

Energias renováveis com geração distribuída podem baratear custos e beneficiar moradores de áreas rurais e populações tradicionais

Por Liana Melo | ODS 13 • Publicada em 12 de novembro de 2021 - 10:10 • Atualizada em 16 de novembro de 2021 - 12:11

Maria Sophia, neta do assentado Antônio Hermínio, e as placas solares de sua casa no assentamento Novo Horizonte, na zona rural de Várzea, na Paraíba.: transição energética (Foto: Arquivo pessoal)

A pequena Maria Sophia adora tirar fotos, especialmente quando, ao fundo, brilham as placas solares instaladas no telhado da casa do avô, o assentado Antônio Marcos do Araújo Herminio. Moradores da região do semiárido Nordestino, no assentamento Novo Horizonte, na área rural do município de Várzea, na Paraíba, seu avô vinha penando, todos os meses, para pagar a conta de luz. Para não ultrapassar o valor de R$ 400, ele irrigava a plantação de mamão apenas metade do mês. Como a fruta está na lista das campeãs da hidratação, possuindo mais de 70% de água em sua composição, a plantação perdeu viço, a produção caiu e o sustento da família começou a correr sérios riscos.

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Ainda que o problema atingisse os 28 assentados de Novo Horizonte, Herminio foi o único que aderiu ao programa de solarização de propriedades de agricultura familiar do Comitê de Energia Renovável do Semiárido (Cersa). Como o sertão da Paraíba é rica em sol, em dezembro de 2019, no mês seguinte a instalação das placas solares, a conta de luz do pequeno agricultor despencou para R$ 21, mesmo com o bombeamento da água para a irrigação funcionando todos os dias e sendo desligado apenas à noite. Desde então, o assentado virou uma espécie de “menino propaganda” do projeto do Cersa, o que vem dando o maior orgulho para a neta Maria Sophia. Com a economia nos gastos com conta de luz, Hermínio aumentou a plantação de mamão e diversificou, apostando na produção de melancia e hortaliças.

O assentado Antonio Herminio e a neta Maria Sophia na plantação de melancia. (Foto: Arquivo pessoal)
O assentado Antonio Herminio e a neta Maria Sophia na plantação de melancia. (Foto: Arquivo pessoal)

Diante do aumento de 50% na bandeira tarifária neste ano, que pulou de R$ 9,49 para R$ 14,20 por 100kWh, a escassez hídrica do semiárido brasileiro ganhou um aliado de peso: a crise energética, que afeta gravemente os mais vulneráveis, como é o caso de Herminio. Roraima é o único estado brasileiro que ainda está fora do Sistema Interligado Nacional e, por isso, o aumento da tarifa não atingiu os consumidores de lá.

“Não vou mudar o planeta, mas estou fazendo minha parte”, conta Herminio, acrescentando que sabe dos benefícios da energia solar para enfrentar o agravamento das mudanças climáticas. Em pleno século XXI, o debate sobre transição energética de baixo carbono continua vivo, mas o tema ganhou relevância na Conferência do Clima, a COP26, que terminou hoje em Glasgow, na Escócia, ao ser encorpado com novas variáveis, como a justiça climática.

A transição energética precisa ser justa, popular e inclusiva”, defende Joilson Costa, coordenador-executivo da Frente por uma Nova Política Energética para o Brasil e responsável pela campanha “Energia para Vida”. Para ele, não basta abandonar a energia fóssil, abraçar as fontes renováveis, como solar e eólica, mantendo o mesmo modelo de produção centralizado. “Precisamos apostar na geração distribuída, porque é ela que vai promover a autonomia energética de mulheres, jovens, populações tradicionais e urbanas”, defende.

Padaria Solar, no município Várzea Comprida das Oliveiras, na Paraíba, só não fechou durante a pandemia porque a fonte renovável garantiu o funcionamento do empreendimento. (Foto: Arquivo pessoal)

Maria Solange de Oliveira é um exemplo vivo do efeito positivo da geração distribuída: “Se não fosse a energia solar no nosso telhado, não teríamos conseguido manter a padaria aberta durante a pandemia”. Ela e mais 16 mulheres abandonaram a lida na agricultura, ao lado dos maridos, há cerca de dois anos, para abrir a Padaria Solar, no município Várzea Comprida das Oliveiras, também na Paraíba. O empreendimento foi apoiado pelo Fundo Socioambiental CASA, idealizado pelo professor Valmeran Trindade, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB), e o advogado e ecologista César Nóbrega. Ambos fazem parte do Cersa.

“As energias renováveis fazem parte de um bem comum e devem compor a construção de uma economia solidária solar”, analisa Nóbrega. E Trindade complementa: “A instalação de um kit fotovoltaico, na modalidade de compartilhamento de energia, com uma família agricultora, assentada da reforma agrária, é uma experiência que tem como objetivo a quebra do paradigma de que a energia planetária é um tipo de mercado que serve, simplesmente, para a geração de capital”.

Rico em sol, o país já virou um exemplo para o mundo.  Em menos de uma década, a potência instalada de energia solar passou de sete megawatts (MW) para 11 MW, a mesma capacidade da usina de Belo Monte, no Pará. “A fonte solar deve se tornar a número um em diversos países nos próximos 30 anos, inclusive no Brasil, mas, para isso, é preciso acelerar o ritmo atual dos projetos, que estão deixando muita a desejar”, cutucou o Rodrigo Sauaia, presidente da Associação Brasileira de Energia Solar, (Absolar), que participou, virtualmente, de um dos painéis na COP26.

“Mesmo com esse crescimento todo, ainda temos muito que avançar, porque hoje a solar é apenas 2% da matriz energética, um porcentual pequeno diante do potencial, que pode chegar a 32% em 2050 e ultrapassar as hidrelétricas, segundo estudos e consultorias internacionais”, informou Sauaia, durante a apresentação na conferência.

Painéis solares em instalação na região do semiárido brasileiro. (Foto: Palloma Pires/ Divulgação)

Presente em mais de 255 mil sistemas instalados em residências, comércios, indústrias, produtores rurais e prédios públicos, a energia solar distribuída se espalhou nos telhados pelo Brasil. Os painéis solares geram a energia consumida durante o dia na casa e injetam na rede o excedente, que é convertido em crédito energético. São esses créditos que fazem com que os consumidores consigam economizar na conta de energia, segundo a Resolução Normativa 482 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

A geração distribuída não significa a anulação da geração centralizada, que é promovida pela Aneel nos seus leilões. “Elas são complementares”, explica Costa, comentando que a geração eólica, ainda que igualmente renovável, ainda é bastante inacessível para disputar espaço com a solar na geração distribuída, especialmente devido ao preço. A principal barreira para escalar os projetos de geração distribuída entre a população mais vulnerável está justamente na falta de subsídios governamentais e de uma política pública. “A geração distribuída seria bastante vantajosa, justamente num momento em que a energia está tão cara”, calcula ele, comentando que o tempo médio para abater o investimento gira em torno de três anos.

A Paraíba e especialmente a região do semiárido do estado virou um celeiro de boas experiências com geração solar distribuída. (Foto: Palloma Pires/ Divulgação)

A Paraíba virou um celeiro de boas experiências. Os painéis solares estão espalhados pelos telhados de igrejas, escolas, postos de gasolina, comércio, residências. A Cooperativa Bem Viver, criada pelo Cersa, é o primeiro projeto de energia solar distribuída na região do Médio Sertão da Paraíba. Replicável em outras regiões do estado, a cooperativa começou com 24 sócios fundadores. Cada um deles assumiu o compromisso de contribuir, de forma solidária, com placas fotovoltaicas a serem instaladas na área rural, na casa de pequenos agricultores familiares.

Ainda que outras fontes renováveis estejam ganhando cada vez mais projeção, como é o caso do hidrogênio verde, considerado como revolucionário para a descarbonização da economia, o assunto ainda é polêmico. Será no Ceará, no Complexo Industrial e Portuário do Pecém, a instalação da primeira planta de hidrogênio verde do país. A produção será 100% para exportação, segundo Costa, o que não vai contribuir em nada para limpar a matriz energética brasileira. Além de chamar a atenção para o fato de que por adotar um sistema interligado é praticamente impossível saber se a origem do hidrogênio será realmente verde.

O hidrogênio é composto por um arco-íris de cores. Apontado como o combustível do futuro, o hidrogênio verde é produzido por eletrólise alimentada por fontes renováveis como a eólica ou a solar. As outras cores do hidrogênio envolvem energia fóssil ou nuclear. O preto é produto da gaseificação de carvão mineral, o rosa é produzido por eletrolisadores alimentados por energia nuclear, o turquesa vem do metano do gás natural, e o marron e o azul são variantes do preto e do cinza quando se consegue capturar o dióxido de carbono.

Esta reportagem integra série sobre o impacto da crise climática na vida dos brasileiros, parte das comemorações dos seis anos do #Colabora, e tem o apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil 

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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