(Ilan Zugman*) – No momento em que as crises sanitária, econômica, social e climática provocam impactos sem precedentes na sociedade em escala global, é no mínimo irresponsável que trilhões de dólares em dinheiro público sejam direcionados para manter vivo um setor moribundo que, para piorar, ainda agrava essas mesmas crises, como o dos combustíveis fósseis. É urgente que os governos nacionais ajam imediatamente para pôr fim aos subsídios às indústrias de petróleo, gás e carvão em todo o planeta.
O alerta vem do Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Na edição mais recente da publicação, que retrata anualmente os avanços e desafios das nações na busca por condições adequadas de vida para seus cidadãos, duas novidades chamaram a atenção.
A primeira diz respeito ao desempenho dos países, que lamentavelmente refletiu o baque provocado pela pandemia de covid-19 sobre a renda, a saúde e a educação, três áreas essenciais na análise do relatório. Com isso, a projeção para o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) global foi de queda, um fato inédito desde o início da série, em 1990. Já o segundo destaque tem a ver com a metodologia do levantamento. O PNUD passou a apresentar, além do IDH tradicional, um índice ajustado pelo conceito de pressão planetária. Nessa versão complementar, as emissões de dióxido de carbono (CO₂) e a pegada ambiental de cada país passam a fazer parte do cálculo que aponta o nível de desenvolvimento nacional.
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Veja o que já enviamosDessa oportuna inovação surgiu um quadro bastante diferente daquele que se vê quando apenas as dimensões tradicionais são consideradas. Na classificação construída a partir do IDH ajustado, mais de 50 países abandonaram o grupo de desenvolvimento humano muito alto, devido às suas emissões de carbono elevadas, e o relatório é bastante claro ao vincular o tombo dessas nações à sua dependência dos combustíveis fósseis como principal fonte de energia. Em sentido contrário, países de matriz energética mais limpa do que a média global subiram posições no ranking.
O novo cenário mundial sintetizado pelo relatório do PNUD, portanto, caracteriza-se pelo empobrecimento global associado à covid-19 e pela confirmação do fato de que os combustíveis fósseis tornam inviável o atual modelo de desenvolvimento. Frente a essas constatações, é ainda mais chocante observar que a maioria das nações continua a usar dinheiro de seus contribuintes para sustentar artificialmente uma indústria que retém o avanço rumo a uma sociedade mais justa, sustentável e igualitária.
O custo total dos subsídios, incluindo custos indiretos, é estimado em mais de US$ 5 trilhões por ano, ou 6,5% do PIB global, de acordo com os números do FMI citados no relatório, e esse gasto ainda impede a transição para modelos de desenvolvimento sustentável. Tal cifra supera os mais elevados pacotes de recuperação econômica anunciados pelos governos em 2020, em seus esforços históricos para salvar milhões de vidas e empregos frente à pandemia. Ainda de acordo com o relatório, a eliminação desses subsídios, em 2015, teria reduzido as emissões globais em 28%, e as mortes por poluição do ar em 46%.
Por que, então, perpetuamos esses subsídios, que ao invés de contribuir para uma reconstrução saudável das nossas economias eliminam vidas e travam o desenvolvimento? Parte da resposta encontra-se, mais uma vez, no próprio relatório do PNUD. Como aponta o IDH ajustado por pressão planetária, os países ricos são os que mais contribuem para o aquecimento global. Porém, são as nações mais pobres, bem como as populações mais pobres dentro de cada país, as maiores vítimas dos desastres naturais e desequilíbrios climáticos, como secas e inundações extremas. Com os impactos distribuídos de forma desproporcional, fica mais fácil para as camadas mais ricas das sociedades, onde se encaixam as grandes corporações que controlam a indústria fóssil, ignorar a violência que estão cometendo ao alimentar a crise climática e seguir com o “business as usual“.
Outro pilar de sustentação do sistema de subsídios encontra-se no mito de que petróleo, gás e carvão são essenciais para o crescimento econômico. Não são. Energias renováveis, como a solar e a eólica, já produzem, em muitos casos, energia mais barata, e com maior nível de geração de empregos. Quando acrescentamos os subsídios e custos ocultos dessas fontes à equação, a comparação fica ainda mais favorável para as energias limpas.
A solução para reverter essa espiral de inequidade passa por uma mobilização conjunta de organizações e indivíduos para promover uma nova agenda de desenvolvimento. No Brasil, bancos públicos como o BNDES, que destinou mais de 90 bilhões de reais em empréstimos a empreendimentos de petróleo, gás e carvão entre 2009 e 2019, segundo levantamento da 350.org, deveriam ser os primeiros a rever suas políticas e redirecionar seus fundos para ações voltadas à transição para modelos econômicos de baixo carbono, com criação de empregos e geração de energia limpa e socialmente justa. Vale ressaltar que muitas das linhas de financiamento do banco para combustíveis fósseis apresentam juros mais baratos do que os cobrados pelo mercado, com efeitos práticos similares aos dos subsídios.
Nos últimos meses, tornaram-se comuns os discursos de governantes pregando que, no pós-pandemia, o retorno ao “velho normal” não basta. Do ponto de vista climático, o que separará os discursos vazios dos efetivos serão as ações concretas para que a era dos combustíveis fósseis de fato fique no passado. Países que investirem na transição energética como medida de recuperação justa mostrarão que, de fato, são capazes de transformar as múltiplas crises que vivemos em oportunidade para um salto de desenvolvimento econômico, ambiental, social e humanitário.
* Ilan Zugman é mestre em Gestão Ambiental e diretor da 350.org para a América Latina.