Papa Francisco: morre um defensor do planeta e do meio ambiente

Encíclica Ludato Si', publicada em 2015, foi a primeira de um líder da Igreja Católica sobre a questão ambiental, com repercussões muito além da religião

Por Oscar Valporto | ODS 10ODS 13ODS 15 • Publicada em 21 de abril de 2025 - 10:14 • Atualizada em 21 de abril de 2025 - 10:32

O Papa Francisco em uma de suas últimas aparições públicas: legado de defesa do ambiente e do planeta e de alerta sobre a crise climática (Foto: Vaticano / Divisão de Mídia – 06/04/2025)

Horas depois do Papa Francisco aparecer na missa campal do domingo de Páscoa na Praça de São Pedro, o Vaticano anunciou a morte, aos 88 anos, do líder da Igreja Católica, que deixa, em seu legado, os esforços para abrir os olhos do mundo – particularmente dos mais de 1,3 bilhão de católicos – sobre a crise climática, seus riscos para o planeta, em especial para as pessoas mais pobres e vulneráveis. “Precisamos de uma nova maneira de pensar sobre os seres humanos, a vida, a sociedade e a nossa relação com a natureza”, escreveu Francisco na encíclica Laudato Si’, publicada em 2015.

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Foi a primeira encíclica de um Papa sobre sobre o tema do meio ambiente — e causou repercussão dentro e fora da Igreja. No centro da Laudato Si’ está a ideia de ecologia integral — a noção de que a crise climática está intrinsecamente ligada aos nossos atuais problemas sociais, políticos e econômicos e não pode ser abordada isoladamente deles. “Não enfrentamos duas crises distintas, uma ambiental e outra social”, escreve o Papa, “mas sim uma crise complexa que é ao mesmo tempo social e ambiental”, escreveu o Papa Francisco.

O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projecto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum.

Papa Francisco
Na encíclica Laudato Si'

Das muitas encíclicas, exortações apostólicas e cartas abertas que o Papa Francisco produziu durante seus doze anos de pontificado, nenhuma causou tanto impacto quanto a Laudato si’ : Sobre o Cuidado da Casa Comum, um documento histórico de 184 páginas, em que lamenta os danos ambientais e o aquecimento global, criticando o consumismo e mirando no “mito moderno do progresso material ilimitado”.

O texto também expõe os argumentos científicos para as mudanças climáticas causadas pelo homem, vinculando-as a uma perspectiva moral e alertando sobre “consequências graves” se as coisas não mudarem. O Papa Francisco não deixou dúvidas de que apoiava o consenso científico de que o aquecimento global se devia aos gases de efeito estufa liberados pela atividade humana.

Este documento também foi divulgado apenas seis meses antes da COP21, a conferência da ONU sobre mudanças climáticas, onde o histórico Acordo de Paris foi assinado, com o compromisso de 196 países de limitar o aquecimento global. Ambientalistas apontam que a encíclica do Papa Francisco e o envolvimento do Vaticano nas negociações foram importantes para o acordo; delegações de países católicos, por exemplo, assumiram fortes compromissos climáticos durante a COP21.

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Na Laudato si’, o Papa Francisco combina reflexões teológicas marcantes, imagens poéticas e exortação à ação política. “Há um significado místico a ser encontrado em uma folha, em uma trilha na montanha, em uma gota de orvalho, no rosto de um pobre. Ao ficarmos maravilhados diante de uma montanha, não podemos separar essa experiência de Deus”, escreveu. “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum”, acrescentou.

O Papa, no documento, também condena “uma política preocupada com resultados imediatos, apoiada por setores consumistas da população” e “impulsionada a produzir crescimento a curto prazo”. O conceito de justiça ambiental, cada vez mais central na defesa do planeta, já estava presente na encíclica papal.  “Precisamos de uma abordagem integrada para combater a pobreza, que proteja a natureza e, ao mesmo tempo, restaure a dignidade dos excluídos”.

Francisco também coloca o dedo na ferida ao apontar os vilões do aquecimento do planeta. “Sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser, progressivamente e sem demora, substituída”, afirma a encíclica papal.  “A política e a indústria reagem com lentidão, longe de estar à altura dos desafios mundiais. Neste sentido, pode-se dizer que, enquanto a humanidade do período pós-industrial talvez fique recordada como uma das mais irresponsáveis da história, espera-se que a humanidade dos inícios do século XXI possa ser lembrada por ter assumido com generosidade as suas graves responsabilidades”, acrescenta.

Uma das principais consequências da Laudato si’ foi um aumento significativo no ativismo ambiental católico. Novas organizações foram fundadas em resposta direta à encíclica, desde o Movimento Global Laudato Si’ até o Instituto de Pesquisa Laudato Si’ em Campion Hall, Oxford. Outras entidades que já existiam — inclusive a Caritas Internationalis, o braço de caridade da Igreja Católica — expandiram seu trabalho em questões ambientais. Artigo de 2019 na revista Biological Conservation apontou que a Laudato si’ levou a um aumento mundial no interesse por questões ambientais — um aumento especialmente proeminente países católicos, mas que não ficou restrito a eles.

Durante seus 12 anos de pontificado, Francisco voltou constantemente ao tema ambiental, destacando a crise climática.  A capacidade do Papa de falar com pessoas de diferentes origens abriu caminho para que ele se envolvesse ainda mais nas conferências da ONU sobre mudanças climáticas.

O Papa Francisco tem sido uma figura imponente da dignidade humana e um defensor global inabalável da ação climática como um meio vital para alcançá-la. Por meio de sua incansável defesa, o Papa Francisco nos lembrou que não pode haver prosperidade compartilhada até que façamos as pazes com a natureza e protejamos os mais vulneráveis

Simon Stiell
Secretário-executivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC)

Antes da COP28 em Dubai em 2023, o Papa Francisco revisitou o tópico com um tratado atualizado sobre mudanças climáticas. Laudate Deum é uma exortação apostólica que pede ação urgente diante da crise. “Com o passar do tempo, percebi que nossas respostas não foram adequadas, enquanto o mundo em que vivemos está entrando em colapso e pode estar próximo do ponto de ruptura”, escreve. Desta vez, o líder da Igreja Católica cita especificamente nos cidadãos de países ricos que vivem um “estilo de vida irresponsável”. O Papa Francisco destaca, por exemplo, que, nos EUA, as emissões por pessoa eram duas vezes maiores que na China e sete vezes maiores que a média dos países mais pobres do mundo.

O Papa Francisco pretendia ir pessoalmente à COP28, fazendo história como o primeiro Papa a discursar na conferência sobre mudanças climáticas. No entanto, problemas pulmonares o impediram de viajar para Dubai – seu discurso foi lido pelo secretário de estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin. No texto, Francisco criticou os esforços para transferir a culpa pela crise climática para o aumento populacional nos países pobres. E apontou “emissores históricos” como “responsáveis ​​por uma dívida ecológica profundamente preocupante”.

Ele também abordou um dos principais tópicos da COP28 ao defender, no discurso, que era justo que esses países que usaram quantidades excessivas de combustíveis fósseis acabassem com as dívidas das nações mais pobres – o debate sobre perdas e danos causados ​​pela crise climática até hoje avança lentamente e estará novamente entre os temas da COP30, em Belém.

Ano passado, a saúde novamente impediu o Papa Francisco mais uma vez de viajar para a COP29 no Azerbaijão, mas ele novamente enviou uma mensagem à conferência climática da ONU, lida pelo cardeal Parolin.  No texto, o Papa disse que o “verdadeiro desafio do nosso século” era a indiferença em relação à crise climática, enfatizando que “a indiferença é cúmplice da injustiça”. Francisco apelou aos países que mais contribuem com gases de efeito estufa para que reconhecessem sua “dívida ecológica” e pediu “uma nova arquitetura financeira internacional” que fosse “baseada nos princípios de equidade, justiça e solidariedade”.

O presidente Lula e o Papa Francisco em encontro na Itália: "Com sua simplicidade, coragem e empatia, Francisco trouxe ao Vaticano o tema das mudanças climáticas", disse o presidente do Brasil (Foto: Ricardo Stuckert / PR - 14/06/2024)
O presidente Lula e o Papa Francisco em encontro na Itália: “Com sua simplicidade, coragem e empatia, Francisco trouxe ao Vaticano o tema das mudanças climáticas”, disse o presidente do Brasil (Foto: Ricardo Stuckert / PR – 14/06/2024)

Legado ambiental destacado na despedida

A morte do argentino Jorge Bergoglio, o primeiro Papa latino-americano, foi comunicada pelo Vaticano no começo da manhã desta segunda-feira. As manifestações de pesar se espalharam pelo mundo: muitas destacaram sua participação na defesa do meio ambiente e do planeta e no alerta sobre a crise climática. “O Papa Francisco tem sido uma figura imponente da dignidade humana e um defensor global inabalável da ação climática como um meio vital para alcançá-la”, escreveu o chefe do clima da ONU, Simon Stiell, sobre o falecimento do Papa Francisco, nas redes sociais.

Stiell acrescentou que o Papa Francisco “tinha um profundo conhecimento prático de questões climáticas complexas, e sua liderança reuniu as forças mais poderosas da fé e da ciência para apresentar verdades incontestáveis”, destacando os custos da crise climática para bilhões de pessoas. “Por meio de sua incansável defesa, o Papa Francisco nos lembrou que não pode haver prosperidade compartilhada até que façamos as pazes com a natureza e protejamos os mais vulneráveis, pois a poluição e a destruição ambiental levam nosso planeta perto do ponto de ruptura”.

Para o secretário-executivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), o falecimento do Papa Francisco será sentido profundamente por ​​milhões de pessoas. “Mas sua mensagem permanecerá viva: a humanidade é comunidade. E quando qualquer comunidade é abandonada – à pobreza, à fome, aos desastres climáticos e à injustiça – toda a humanidade é profundamente diminuída, material e moralmente, em igual medida”, afirmou Stiell.

O presidente Lula decretou luta oficial de sete dias no Brasil, primeiro país a ser visitado pelo Papa no seu pontificado, em 2013. “Assim como ensinado na oração de São Francisco de Assis, o argentino Jorge Bergoglio buscou de forma incansável levar o amor onde existia o ódio. A união, onde havia a discórdia. E a compreensão de que somos todos iguais, vivendo em uma mesma casa, o nosso planeta, que precisa urgentemente dos nossos cuidados”, afirmou Lula em nota oficial.

“Com sua simplicidade, coragem e empatia, Francisco trouxe ao Vaticano o tema das mudanças climáticas. Criticou vigorosamente os modelos econômicos que levaram a humanidade a produzir tantas injustiças. Mostrou que esse mesmo modelo é que gera desigualdade entre países e pessoas. E sempre se colocou ao lado daqueles que mais precisam: os pobres, os refugiados, os jovens, os idosos e as vítimas das guerras e de todas as formas de preconceito”, acrescentou o presidente.

O rei Charles III, que esteve com o Papa há poucos dias, destacou que Francisco será lembrado pelo seu “incansável compromisso” com as causas comuns de todas as pessoas de fé. “Sua crença de que o cuidado com a Criação é uma expressão existencial de fé em Deus repercutiu em muitas pessoas ao redor do mundo. Por meio de seu trabalho e cuidado com as pessoas e o planeta, ele tocou profundamente a vida de tantos”, afirmou o rei da Inglaterra.

O presidente da Irlanda, Michael D. Higgins, lembrou a Laudato Si’. “Ele convocava todos nós a enfrentar o desafio urgente de proteger a nossa casa comum e a aceitar o desafio de reunir toda a família humana na busca cooperativa de uma forma de vida sustentável e integral”, afirmou. “Em questões vitais do nosso tempo — como a fome e a pobreza globais, as mudanças climáticas e a justiça, a situação dos migrantes e dos povos indígenas, dos despossuídos, a necessidade fundamental da paz e da diplomacia globais — a voz do Papa Francisco constituiu uma invocação consistente de uma humanidade compartilhada que é representada pelo reconhecimento da dignidade essencial de cada pessoa humana”, acrescentou.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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