Recentemente, tive uma longa discussão conceitual num happy hour durante a COP 27. Após o anúncio do futuro Ministério dos Povos Originários, feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante seu primeiro discurso, entramos em uma disputa argumentativa interminável se isso seria uma ação política de litigância ou justiça climática. Ou seria ambos? Não me lembro mais como nem o porquê fomos tão teimosos, mas passamos um bom tempo proseando.
Certamente sob o efeito do gatilho chamado atual momento eleitoral, lembramos da última eleição do governo americano, que tomou posse em 20 de janeiro de 2021. Para a comunidade climática internacional, a chegada do democrata Joe Biden representou não apenas um caminho de esperança, mas também um novo fôlego da agenda do clima como prioridade máxima. Sendo os Estados Unidos o maior emissor mundial de gases de efeito estufa (GEE), o retorno do país para o Acordo de Paris, sem dúvidas, até hoje é um motivo de celebração. Após quatro anos fora de um dos tratados mais importantes da história da Convenção Quadro das Nações Unidas (UNFCCC, da sigla em inglês), seguimos observando uma retomada de políticas ambientais internacionais que influenciam o Norte e o Sul Global.
Apresentado dias após a posse de Biden, o pacote de medidas de combate à mudança do clima era uma promessa da campanha do democrata. Entre os pontos principais, a noção de justiça climática estruturou o plano da atual presidência, evidenciando com força as interseccionalidades e opressões estruturais. Ao assinar o decreto, uma das realizações imediatas do Ministério da Justiça foi a criação de uma Secretaria de Justiça Climática.
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Veja o que já enviamosApós o anúncio do futuro Ministério dos Povos Originários, feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante seu primeiro discurso na COP 27, entramos em uma disputa interminável se isso seria uma ação política de litigância ou justiça climática. Ou seria os dois?
Diante desse contexto de mudanças que, indubitavelmente, influenciam a política internacional, a compreensão de conceitos como justiça climática X litigância climática é crucial – tanto para compreender, quanto para a qualificação do debate público no Brasil. Confira a seguir 6 argumentos e curiosidades para entender a diferença e correlações entre ambos. Entenda os conceitos, as diferenças e as conexões entre os temas.
1.Eles não são sinônimos
Em primeiro lugar, tanto a justiça climática quanto à litigância climática vinculam a defesa dos direitos humanos ao tema das mudanças climáticas. Contudo, enquanto a justiça climática é um movimento que luta por ações para populações e comunidades vulneráveis, a litigância climática é definida “como uma ferramenta jurídica apta a acionar o poder judiciário e órgãos extrajudiciais para avaliar, fiscalizar, implementar e efetivar direitos e obrigações relacionados às mudanças climáticas”. Aprofundaremos ambos nos dois tópicos seguintes.
2.Justiça climática é um desdobramento do movimento de justiça ambiental
Por volta da década de 1960, o auge da luta por direitos civis e políticos impulsionou o movimento por justiça ambiental nos Estados Unidos. A sucessão de protestos contra a contaminação tóxica mobilizou os movimentos sociais em todo o país, que denunciavam não apenas a exposição de grupos minoritários aos riscos relacionados à localização de resíduos perigosos e indústrias poluentes, como também empregos e condições insalubres que expunham trabalhadores – negros, pobres e residentes de regiões periféricas – ao contato com substâncias tóxicas. A partir dessa mobilização que unia pautas sociais, territoriais e ambientais, surgiu um novo movimento motivado pela injustiça diante causada pela crise climática. Assim, a noção de justiça climática nasce e é caracterizada como um movimento recente que não limita a abordagem da crise climática como meramente ambiental, mas um tema cujas causas e efeitos estão intrinsecamente vinculados à questão social.
3.Litigância climática é um instrumento jurídico
De acordo com o Guia de Litigância Climática, lançado pela Conectas Direitos Humanos em 2019 durante a 25ª Conferência do Clima, em Madri, “litígios climáticos se apresentam como uma possibilidade estratégica na luta contra a mudança do clima e a favor da defesa dos direitos humanos”. Segundo o manual, a litigância climática pode ser entendida, em geral, “como ações judiciais que requerem do Poder Judiciário ou de instâncias administrativas decisões que expressamente abordem questões, fatos ou normas jurídicas relacionadas, em sua essência, às causas ou aos impactos das mudanças climáticas”. Segundo o Sabin Center, há aproximadamente 1400 casos de ações judiciais sobre o clima em todo o mundo.
4.Preâmbulo do Acordo de Paris
O fato de o conceito de justiça climática ter sido explicitado logo no preâmbulo do Acordo de Paris foi um grande marco para o movimento. Segundo Letícia Lima, isso ainda não havia acontecido em documentos internacionais anteriores. “O Acordo de Paris foi crucial porque explicitou a justiça climática, colocou em um documento internacional e, como todos sabem, os países em seguida internalizam esses acordos, transformando-os em normas nacionais, subnacionais”, explica a advogada, que defendeu sua dissertação de mestrado sobre (in)justiça climática e mulheres apresentada no departamento de Direito da PUC-Rio.
5.Casos de litígios no Brasil afora
Em novembro de 2020, acompanhamos o primeiro caso brasileiro de litígio climático com foco na Amazônia. O Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu uma importante ação socioambiental, a ADPF 760, para exigir a retomada efetiva do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAM), concebida, coletivamente, por dez organizações da sociedade civil que pediram participação no processo como amicus curiae.
Mais um exemplo de litígio climático no Brasil é o caso do Movimento Famílias pelo Clima, que, em setembro de 2020, protocolou ação contra o Governo do estado de São Paulo, questionando a destinação de bilhões de reais para a indústria automotiva sem contrapartida climática.
Já em contexto internacional, há casos emblemáticos como o de Urgenda, na Holanda, quando uma organização ajuizou em 2015 ação contra o governo solicitando que o país assumisse a obrigação de reduzir ou garantir a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) da Holanda em 40% até 2020 ou, ao menos, 25%, em comparação com os níveis de 1990. O Leghari, no Paquistão, quando um agricultor entrou com uma ação judicial, em 2015, contra o governo alegando omissão e atrasos por parte deste na implementação da Política Nacional de Mudanças Climáticas e no enfrentamento das vulnerabilidades associadas às mudanças climáticas. O caso da Exxon Mobil, em 2018, quando o estado de Nova Iorque processou a multinacional de petróleo e gás, alegando que a empresa enganou acionistas ao minimizar os riscos esperados das mudanças climáticas em seus negócios. No mesmo ano, na Colômbia, 25 jovens entraram com ações em diferentes níveis, especialmente contra o Ministério do Meio Ambiente da Colômbia, exigindo seus direitos ao meio ambiente, à vida, à saúde, à alimentação e à água.
*Casos literalmente extraídos do Guia de Litigância Climática
6. Referências para aprofundar
Cinco conteúdos de justiça climática para maratonar (2022)
Guia de Litigância Climática (2019)
Litigância Climática: novas fronteiras para o direito ambiental no Brasil (2019)
Série de artigos do JOTA sobre direito e clima
Princípios da justiça climática (2002)
Violação de direitos humanos e esforços de adaptação e mitigação: uma análise sob a perspectiva da justiça climática (2020)
Justiça climática X litigância climática (2020)
Encontro Internacional sobre Litigância Climática (2019)